Wednesday, July 06, 2011

Duchamp por Breton



Regressamos à Antologia do Humor Negro para aqui deixarmos o texto onde André Breton apresenta um dos autores antologiados, Marcel Duchamp. Texto traduzido por Luiza Neto Jorge.

Tendo franqueado o fosso que separa as ideias particulares das ideias gerais, o que já é próprio dos grandes espíritos, o génio de Marcel Duchamp consiste, talvez, em tê-las, por seu turno, abandonado para se antecipar aquilo a que poderíamos chamar as ideias gerais particularizadas. Perguntamo-nos, assim, se, sob o nome de Délie, Maurice Scève terá cantado uma determinada mulher, “l´idée”¹ (abstraída de toda e qualquer representação feminina), l´idée cujo anagrama é Délie. Tendo os princípios correntes do conhecimento e da existência e da existência sido deliberadamente transgredidos, acontece que pela primeira vez, com Duchamp, se pode «dar sempre ou quase sempre o porquê da escolha entre duas ou mais soluções (por causalidade irónica)», ou seja, fazer intervir o prazer na própria formulação da lei à qual a realidade deverá responder. (Exemplos: «um fio horizontal tomba da altura de um metro sobre um plano horizontal, deformando-se como bem lhe apraz e apresenta uma nova figura da unidade de comprimento», ou «por condescendência, um peso é mais pesado à descida do que à subida», as garrafas de marca (género Benedictine) obedecem a um princípio de densidade oscilante.) É nisto que reside aquilo a que Duchamp chamou o «ironismo de afirmação», por oposição ao «ironismo negador, unicamente o que está para o humor como a flor da farinha para o trigo. Neste caso o moleiro, aquele que, ao cabo, de todo o processo histórico de desenvolvimento do dandismo, acedeu, no dizer de Mme Gabrielle Buffet, a fazer figura de «técnico benévolo», o nosso amigo Marcel Duchamp é seguramente o homem mais inteligente e (para muitos) o mais incómodo desta primeira parte do século vinte. A questão da realidade, nas suas relações com a possibilidade, questão essa que continua a ser a grande fonte de angústia, encontra aqui resolução, da maneira mais audaciosa: «A realidade possível (obtém-se) distendendo um pouco as leis físicas e químicas.» Temos por certo que, mais tarde, se tentará encontrar a ordem cronológica rigorosa dos achados a que no campo plástico este método foi susceptível de levar Marcel Duchamp e cuja enumeração excederia o âmbito desta nota. O futuro só terá que remontar sistematicamente o seu curso e descrever-lhe cautelosamente os meandros, em busca do tesouro oculto que foi o espírito de Duchamp, através deste, daquilo que mais raro e precioso há nele, o próprio espírito do nosso tempo. Ora isto implica não só uma iniciação mais profunda como também a mais moderna maneira de sentir, cujo humor se apresenta, nesta obra, como condição implícita.

Após uma passagem meteórica pela pintura (Jeune homme triste dans un train, Nu descendant un escalier, Le roi et la reine entourés de nus vites, Le roi et la reine traversés par dês nus vites, Vierge, Le passage de la Vierge à la Mariée, Mariée), e ao mesmo tempo que, de 1912 a 1923, se vai consagrando a essa espécie de «anti-obra-prima»: La mariée mise à nu par ses célibataires même, que constitui a sua obra capital, Duchamp, como protesto contra a indigência, a seriedade e a vaidade artísticas, assina um certo número de objectos feitos (ready made) dignificados a priori unicamente em virtude da sua escolha: cabide, pente, garrafeira, rodas de bicicletas, urinol, pá para a neve, etc. Enquanto não passa aos ready made recíprocos («servir-se de um Rembrandt como tábua de engomar»), contenta-se, ainda no mesmo campo, com os ready made auxiliados: Joconda (sic) embelezada com um par de bigodes, gaiola de pássaros cheia de pedaços de mármore branco a imitar cubos de açúcar e atravessada por um termómetro, etc.

Em alternância com alguns preconceitos inéditos, bem característicos da sua maneira de ser, apresentaremos aqui uma série assaz completa de frases compostas de palavras submetidas ao «regime da coincidência», frases nas quais este ou aquele objecto encontrou o seu acompanhamento ideal, frases que têm o próprio brilho da telescopagem (sic) e mostram o que no campo da linguagem é possível esperar do «acaso em conserva», a grande especialidade de Marcel Duchamp.
1 A ideia (N. T.)

Andre Breton