Saturday, October 30, 2010

Um poema de Charles Cros



Um poema de Charles Cros (foto) na Antologia do Humor Negro. Está traduzido por Aníbal Fernandes e é referido por André Breton no texto de apresentação de Cros na Antologia.
O arenque fumado

Era um grande muro branco – nu, nu, nu,
Posta no muro uma escada – alta, alta, alta,
No chão, um arenque fumado – seco, seco, seco.

Ele chega, trazendo nas mãos – porcas, porcas, porcas,
Um martelo pesado, um prego – bicudo, bicudo, bicudo,
Um novelo de fio – grosso, grosso, grosso.

Subindo então à escada – alta, alta, alta,
Espeta o prego bicudo – toque, toque, toque,
Ao alto do muro branco – nu, nu, nu.

Deixa fugir o martelo – que cai, que cai, que cai,
ao prego amarra a corda – longa, longa, longa,
E à ponta o arenque funado – seco, seco, seco.

Volta descer a escada – alta, alta, alta,
Leva-a, e ao martelo – pesado, pesado, pesado.
E lá se afasta para – longe, longe, longe.

Então o arenque fumado – seco, seco, seco,
Na ponta da corda – longa, longa, longa,
Balança devagarinho – sempre, sempre, sempre.

E eu invente esta história – banal, banal, banal,
Para enfurecer as pessoas – graves, graves, graves,
E divertir as criancinhas – pequenas, pequenas, pequenas.

In O Cofre de Sândalo

Cros por Breton


Charles Cros (1842 – 1888) é mais um dos autores que Breton reuniu na Antologia do Humor Negro. Aqui fica o texto em que André Breton apresenta Cros, numa tradução de Aníbal Fernandes para as edições Afrodite.


Sei fazer versos eternos. É lei
A minha voz em que as palavras valem pelo rigor.
Não ponho à venda por qualquer valor
A razão suprema que, orgulhoso, herdei.

Tudo sofri: mulheres, fogo, vendaval;
Tudo sofri: frio, bom tempo, calor;
Tudo encontrei, pois nada houve impossível de transpor.
Que o teu nome, Fortuna, só eu não sei, afinal.

O que, sem exagero assim pôde apresentar-se – cuja obra poética desvenda um «paraíso matinal» e de quem o coração não soube fazer mais nada que um ramalhete com os lilases do Monte Valeriano – se ainda está longe de ser posto no lugar, deve-o com certeza ao génio que o empurrou como a nenhum outro ao jogo de luz e sombra de várias esferas. Os dedos de Charles Cros, e veremos que os de Marcel Duchamp, são espicaçados por borboletas cor de vida que também se nutrem do suco das flores mas só atraem as fontes luminosas do futuro. Tais dedos são os de um inventor perpétuo. Sempre a fremir entre o objecto e o projecto, esvoaçam da página onde os planos se constroem e ao mesmo tempo se ordenam versos com o material pobre de cuja arrumação, mais ou menos inesperada, pode resultar uma conquista para todos os homens. Nas próprias palavras viu Charles Cros «comportamentos», comportamentos que lhe mereceram apreço idêntico ao que dedicou a outros em que a descoberta, e depois a aplicação, marcam os diversos graus do progresso científico. A unidade da sua vocação como poeta e homem de ciência reside no facto de ter sido sempre objectivo seu arrancar à natureza uma parte dos segredos. Daqui, por exemplo, a orquestração surpreendente de alguns dos poemas em prosa (Sobre três águas-fortes de Henri Cros) que prepararam As Iluminações¹ , daqui a proeza que resultou ao fazer rodar em vazio o moinho poético no Arenque Fumado. É de tal ordem a frescura da sua inteligência que nada lhe parece utópico a priori, se objecto do seu desejo. Menos do que ninguém sente, em função do que é, pensar uma interdição sobre o que não é (a seus olhos, o que ainda não é). Antes de mais, efectuou a síntese artificial do rubi: «imaginou, descreveu, fixou todas as condições do radiómetro com que Sir William Crookes avalia o vazio e mede o imponderável; outrotanto fez com o «fotófono» de que imaginou Graham Bell servindo-se para fazer falar a luz e recolher os ecos do sol. Estabeleceu o princípio da fotografia a cores e está provado que, oito meses e meio antes da descoberta do fonógrafo de Edison, depositou na Academia das Ciências um sobrescrito lacrado contendo a descrição de um aparelho semelhante àquele em quase todos os pontos. Émile Gautier, que acima de tudo se esforçou para que lhe fosse prestada justiça em tal pormenor, refere ainda «os estudos de Charles Cros sobre electricidade, da qual tão espirituosamente ele deplorava as «maçadoras lentidões» e a «constituição xaroposa», o estenógrafo musical, depois realizado por outros com o nome de «melétropo», o telégrafo automático, o cronómetro, o vertiginoso projecto de telegrafia óptica interplanetária, etc.»

A prodigiosa aventura mental de Charles Cros teve em contrapartida as irrisórias condições de vida em que foi obrigada a debater-se. Da mansarda ao «Chat Noir», onde viria a criar o género monólogo, só pela boémia lhe foi dado trocar dia a dia a pobreza. Quer isto dizer que o humor intervém nele como subproduto dessa «filosofia amarga e profunda» que Verlaine lhe empresta e sem a qual não teria podido resignar-se socialmente.

A jovialidade pura de certas partes fantasistas ao máximo da sua obra não deve fazer-nos esquecer que há um revólver apontado ao centro de alguns dos mais belos poemas de Charles Cros.

1 – De Rimbuad (Nota do Trad.)