Thursday, September 16, 2010

Kafka por Breton



Iniciamos uma série de posts, em que publicaremos alguns textos da Antologia do Humor Negro, onde André Breton faz uma apresentação de cada um dos autores antologiados.

Começamos com o texto que André Breton escreveu sobre Franz Kafka:

Por sobre a trama do homem de hoje, o transeunte que, apressado, corre paralelo à chuva, a uma luminosidade que não varia mais do que os tons de tecidos num catálogo de alfaiate, Kafka lança, qual rajada de vento, a principal interrogação de todos os tempos: para onde vamos, a que é que nos submetemos, qual é a lei? O indivíduo humano debate-se no meio de um jogo de forças, cujo sentido geralmente ele já renunciou a deslindar; e a total falta de curiosidade no quer respeita a esse assunto bem parece ser condição de adaptação à vida social: só excepcionalmente o ofício de sapateiro ou de oculista é compatível com uma meditação aprofundada acerca das finalidades da actividade humana. O pensamento de Kafka casa-se com todos os encantos e todos os sortilégios da admirável Praga, sua cidade natal: sem deixar de marcar o minuto exacto, o seu pensamento roda simbolicamente às avessas, como os ponteiros do relógio da sinagoga; lança sobre Moldau, ao meio-dia, o espasmo de gemidos inumeráveis; ao cair da noite, tem o poder único de reavivar o fogo dos fornos na vida dos Alquimistas, autêntico retiro reservado do espírito. Esse mesmo pensamento, profundamente pessimista, não deixa de apresentar afinidades com o dos moralistas franceses: estamos precisamente a pensar num dos últimos, e também um dos maiores de todos, Alphonse Rabe, segundo o qual, “Deus submeteu o mundo à acção de algumas leis secundárias, as quais se orientam para a realização de um fim que nós desconhecemos, mas nos anunciam, pela voz poderosa do instinto moral, o indivisível mundo das separações solenes onde tudo será revelado e explicado”. É em vão que os heróis de Kafka se lançam contra a porta deste mundo: um deles, perdidamente ignorante daquilo de que o acusam, será executado sem julgamento; outro, encerrado num castelo, nem a custo dos maiores esforços conseguirá dar com as portas. O problema aqui levantado em toda a sua amplitude é o da obscura necessidade natural, enquanto ela é oposta à necessidade humana ou lógica, tornando assim quimérica toda e qualquer aspiração profunda de liberdade.

O sonho forneceu a Kafka uma solução provisória para semelhante conflito. Os objectivos virtuais que o povoam deixam de ser estranhos para quem dorme, a sua presença é sempre justificável, a chama do eu ilumina-lhes cada uma das facetas abandonando o corpo humano adormecido, para interiormente as percorrer.

“Eu” confunde-se assim com aquilo de que estava separado antes de adormecer. Ninguém como Kafka conseguiu animar com sensibilidade própria as coisas inanimadas; ninguém, com tanto brilho, soube retomar o ensinamento dos Vers Dóres de Gérard Nerval. Tendo sido empregado na Administração das Águas, na Áustria, há a convicção de que foi ele o responsável pela construção da rede de condutas aquáticas; dessa mesma maneira, apenas com a sua substância emocional, soube ele tecer uma teia em que não subsiste qualquer solução de continuidade entre os reinos e as espécies, incluindo o homem, teia essa que vibra ao mais pequeno contacto.

Nenhuma outra obra milita tanto contra a administração de um princípio soberano exterior àquele que pensa: “É o homem, pode afirmar-se, que ferve na marmita de Kafka. Ali fica a cozer no caldo da angústia, de onde o humor faz saltar, assobiando, a tampa que no ar traça, em letras azuis, fórmulas cabalísticas”.

André Breton, in Antologia do Humor Negro, 1939

Tradução de Manuel João Gomes