Friday, October 03, 2008

Comentário de José Saramago



Excertos do comentário de José Saramago para a edição da História Trágico-Marítima, intitulado A Morte Familiar:

... que representa hoje para nós este longo rosário de morte e sofrimento, despido de todos os prestígios do heroísmo vivo ou da sua exploração literária?
Por quanto entendo, a História de Gomes de Brito é um livro menosprezado que sofre também daquela espécie de maldição mansa que desceu sobre as Crónicas de Fernão Lopes, sobre a Peregrinação, sobre tantas outras obras que vamos encontrar nas esquinas da cultura com todos os rótulos adequados : «clássico», «importante», «fundamental», e que, após a leitura forçada pela obrigação escolar ou estimulada por um interesse acidental, são postas de lado, até nunca mais. Delas é preciso falar para que fique claro que não se é alheio à literatura herdada dos séculos, mas fala-se com aquele ar de pouco caso que é também receio de que a ocasião exija maior aprofundamento: aí não chegaram os benefícios de qualquer folhear apressado.
A de História Trágico-Marítima é pois um livro desconhecido. Condensa-a uma ficha «cultural» definitivamente catalogada, alinhada de lugares-comuns para uso rápido e descomprometido. Nesse estado de documento a duas dimensões, é muito mais infalível do que seria a leitura verdadeira, com certeza inquieta, talvez demolidora de convicções habituais e de ideias feitas.
Dizer dela que representa a face oxidada do doirado medalhão da descoberta e da conquista, poderia ser, para além da metáfora, um ponto de partida polémico e estimulante. Mas acontece neste caso o que também em muitos outros de igual alternância se verifica: o princípio estabelecido pelos hábitos culturais cobre em excesso a realidade – e oculta-a. E isto é precisamente o que a vida quotidiana luta para fazer à morte: escondê-la, ocultá-la, esquecê-la, se possível. Para a questão em causa (quem foram de facto, que fizeram verdadeiramente por esses mares os portugueses do séc xvi) dispomos até da ocultação por excelência: o triunfalismo de Os Lusíadas.

(...)

São milhares os portugueses, desde o grumete da alfama ao fidalgo de avós godos, que morrem aos gritos nestas páginas; são milhares os escravos que igualmente morrem, mas em silêncio, porque deles não ficou nem o nome nem a voz.

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A expressão do sofrimento é contínua na História Trágico-Marítima. São brevíssimas as pausas neste lamento que se desenrola como uma melopeia infinita, sem esperanças de que a escutem, e que se contenta com ouvir-se a si mesma.

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E é neste ponto que chego a um dos aspectos que mais fundamente me tocam na História Trágico-Marítima: precisamente, a familiaridade da morte. Nos Lusíadas, epopeia oficializada de uma nação largada na aventura do mar desconhecido, a morte é cenográfica, adorna-se de um fundo de deuses complacentes e risonhos, violentos só por necessidade de clímax. Tudo se passa como se já a pátria ali estivesse presente, abençoando os heróis e os mártires, desenhando-lhes estátuas para a reverência da posteridade.


(...)

Uma Nova Doença Mental na URSS: A Oposição, de Vladimir Boukovsky

(edição de Maio de 1977)


Prefácio e notas de Jean-Jaques Marie
Tradução de Manuel Joaquim Gandra
Revisão de: Joaquim Meco
Capa de Nuno Amorim
Colecção Documentos
Edição de Fernando Ribeiro de Mello / Edições Afrodite




Na contracapa

De entre os métodos totalitários – todos mais ou menos empenhados na destruição do indivíduo – avulta a invenção de a clínica psiquiátrica soviética. O cidadão português já ouviu falar de pessoas injustamente internadas em manicómios – por questões de herança, por exemplo. Neste caso, a injustiça desenreda-se por vezes duma maneira que lembra os desfechos do romance policial. Infelizmente, a clínica soviética está fora do alcance dos detectives, oficiais ou particulares. É todo um sistema que esmaga o cidadão. È uma máquina bem oleada que destrói a personalidade. È uma razão de estado contra a qual não há organismo que reponha a verdade dos factos, porque não existe, no estado totalitário, qualquer margem para organizações de oposição legal se tais organizações forem detectadas, elas serão, por sua vez, condenadas como manifestações aberrantes. A «normalidade» é só uma e não pode divergir da sacrossanta voz da opinião oficial.
A construção do decantado «Homem Novo» acabou por conduzir ao ultraje do ser humano. Estabeleceu-se um «padrão», fora do qual só existem, no entender dos «engenheiros de almas», loucos perigosos ou espiões do ocidente. Uma sociedade, que se pretende «perfeita», enclausura os contestatários e, com tal procedimento, julga suprimir a voz subterrânea que reivindica a dignidade.
Clandestinamente circulam os textos Samizdat (edição de autor), onde se denunciam as injustiças totalitárias. O protesto e a criação não param. Mas têm de esconder-se.
Vladimir Bukovsky faz chegar até nós o mais terrível e completo testemunho dum novo universo concentracionário como agentes duma polícia política, os enfermeiros humilham e espancam os «doentes». A tirania ganha requintes «científicos». E, neste inferno, ainda há homens nos quais não se extinguiu a chama da liberdade.