Saturday, May 17, 2008

Uma história da edição Pinguim em Fundo Branco


Uma história e ilustração do livro Pinguim em Fundo Branco:

D. Fuas, Domador

Querem vir comigo ao circo? Sou eu que convido, isto é, sou eu que pago. Venham daí! Cabem todos.
.....

O espectáculo que hoje vos quero oferecer e que me preparo para vos contar tem que se lhe diga. Coisa rara, coisa escolhida do melhor que tenho visto.
E creiam que já vi muitos espectáculos de circo com números inacreditáveis, que nem vale a pena contar, porque, já se vê, ninguém me acreditaria. Vi a Mulher-Serpente, o Homem-Elástico e a filha de ambos, que se chamava a Serpente-Elástica. Vi acrobatas-ciclistas, ciclistas-acrobatas, ciclastas-acrobistas, acrobistas-ciclastas... Eu sei lá o que já vi! Mas há um número que nunca me esquecerei – o Dom Fuas, domador de pulgas.
Este Dom Fuas especializara-se a domar e amestrar animais de toda a espécie. Começara por amestrar elefantes, depois leões, depois focas, depois tartarugas (um número muito lento, que demorava três horas), depois cães, depois ratos e, finalmente, pulgas, centenas de pulgas que ele catara aos outros bichos, com que, sucessivamente, tinha trabalhado.
Recordo com um sorriso a sua última apresentação em público. Que extraordinário espectáculo!
Dom Fuas, cansado de tanto trabalho com tão variados bichos, abandonava abandonava o circo para se dedicar à jardinagem. Pelo menos, foi isto que ele nos disse antes de começar, pela última vez, o seu número com as pulgas amestradas.

Dom Fuas tinha como auxiliares dois cães muito velhos e felpudos, um castanho e outro preto. O castanho é que trazia as pulgas no lombo, pois o pobre animal não parava de se coçar.
Dom Fuas agitava uma varinha e ordenava:
- Meninas (assim ele chamava às suas discípulas pulgas), saltem para o preto.
Eu estava na última fila das bancadas e só vi o cão castanho deixar de se coçar, e o cão preto, até ai muito sossegado, começar a sacudir furiosamente uma das patas traseiras contra a barriga.
- Meninas, saltem para o castanho – gritava Dom Fuas, postado entre os dois cães
Tudo voltava ao princípio. Coçava-se o castanho, descansava o preto. Grande parte do espectáculo era preenchida com esta habilidade. Esqueci-me de dizer que os cães se afastavam cada vez mais um do outro: primeiro, à distância de um passo, depois, dois passos, três passos... até vinte passos. Isto tornava o trabalho cada vez mais arriscado para as meninas, perdão, para as pulgas. Cada novo salto era acompanhado de palmas entusiásticas (o circo estava à cunha), dedicadas tanto às audaciosas pulgas-atletas como ao extraordinário domador.
Por fim, Dom Fuas, dirigindo-se ao público, recordou, num discurso comovido, os melhores passos da sua carreira de domador. E disse a certa altura:
- Os animais que me serviram nunca tiveram razões de queixa! Enquanto comigo trabalharam, concedi-lhes carinhos e bons tratos. Quando os despedia, proporcionava-lhes sempre uma nova vida...
(Aplausos e apoiados vindos do público.)
- Levei os elefantes e os leões para o meio da selva e dei-lhes liberdade. Levei as focas e as tartarugas para o meio do mar e dei-lhes liberdade. Levei os cães e os ratos para o meio da rua e dei-lhes liberdade.
Era um nunca acabar de palmas e de vivas a Dom Fuas, benfeitor dos animais.
- Só me restam estes dois fiéis servidores (apontando para os cães) que preferem envelhecer comigo, na tranquilidade do meu jardim. Ainda estão, é certo, submetidas às minha disciplina as cento e cinquenta e duas pulgas, cujo trabalho Vossa Excelências acabaram de presenciar. Mas...
Nesta ocasião, algumas pessoas mais perto da pista começaram a levantar-se apressadamente.
Dom Fuas prosseguiu:
- ... Mas em breve irão seguir o mesmo caminho dos elefantes, dos leões, das focas, das tartarugas, dos cães, dos ratos...
Eu estava ao pé da porta e, num salto, cheguei à rua. Um salto de mais de vinte pés! Todo o público que enchia o circo correu para as portas, numa tal confusão que até parecia que alguém tinha gritado afogo. Mas, no meio do barulho, ainda se ouviu a voz de Dom Fuas, no centro da pista:
- Meninas, minhas queridas pulgas, sois livres!
Como tinha sido dos primeiros a pôr-me a salvo, tive adita de presenciar a saída da maioria dos espectadores e, podem crer, nunca ma ri tanto. Era de supor que toda aquela gente tivesse aprendido com os pobres cães do Dom Fuas a arte de coçar pulgas...