Thursday, January 10, 2008

A Fome, de José Martins Garcia

(edição de Dezembro de 1977)


José Martins Garcia
Colecção Autores II
Capa de Nuno Amorim
Edição e Arranjo gráfico de Fernando Ribeiro de Mello / Edições Afrodite

Na contracapa


A FOME é na realidade um discurso fantástico.
Há mais de cinco séculos que o Homem se fixou nas ilhas dos Açores. Mas essa fixação nunca foi efectiva. O mar, o céu, o mito, a lenda, a ambição, o sonho, Deus, o Diabo, o Apocalipse ou o Reino do Espírito Santo sempre foram para os habitantes dessas paragens outros tantos e poderosos apelos.

A FOME foi fisicamente um efeito de secas, epidemias, terramotos. A Fome foi (é) também o próprio arquétipo da condição humana, tal como esta se revela no contexto insular – talvez, no fundo, a radical insatisfação perante as coisas deste mundo, fome do corpo e do espírito, emigração e saudade, heroísmo e loucura, rapina e dádiva, aventura e heresia.
Revelação de interditos e miragens. A FOME é subterraneamente a ânsia de liberdade total. O seu discurso permanente inicia-se em meados do século XV, no momento da descoberta mítica de uma ilha, e suspende-se no terceiro quartel do século XX, quando Portugal inicia a sua última peripécia colonial. Suspende-se, mas não se extingue.
Porque este discurso onde o passado se confunde com o presente, onde se reencontram os bichos e os deuses, só se extinguirá quando acabar a humana memória.

Luiz Pacheco a favor de Sade


O prefácio que Luiz Pacheco escreveu para a edição da Filosofia na Alcova.


O SADE AQUI ENTRE NÓS


para a Natália Correia,

uma presença europeia no Portugal de hoje

«...puis-je savoir, messieurs. Dis-je, en m´adressant au cercle, lequel de vous est le duc de Cortéreal ?…
- Que veut-elle dire, dit le premier qui avait parlé, et où va-t-elle chercher ici le duc de Cortéreal ?…
- Quoi ?… ce n´est point chez lui ?…
- Les innocentes, dit de second comme on les a trompées… Apprenez que vous êtes ici chez le premier corrégidor de Lisbonne... Le voilá, continua-t-il, en montrant le plus âge des quatre; il se reunit ici avec trois de ses amis, gens de justice ainsi que lui, à dessein de s´amuser des petits imbéciles qui, comme vous, nous tombent parfois sous la main.
- Mais cependant voilá nos malles, dit Clémentine; est-il possible que ceux qui sont fait pour mantenir l´ordre aient pu le troubler à ce point!...»

(do episódio lisboeta de Aline et Valcour
ou le Roman philosophique, publicado por Sade em 1795).



Pedem-me um prefácio sobre Sade, sete páginas máquina prazo dez dias, para uma tradução portuguesa da Philosophie dans le Boudoir. Pelos limites do espaço e tempo consignados pela entidade convidada (eu; emparceirado com o David que faz ou fez outro prefácio anti-Sade), o Leitor inteligente já prevê o género de prefácio que lhe vou atirar: uma prosa humorística, um sadismo caseiro, inofensivo, literário, bonacheirão, que gostosamente daqui ofereço ao Meritíssimo Dr. Arelo Manso, o qual teve o carinho de me prevenir, em audiência na Boa-Hora, que «a libertinage neste paíxe (ele fala axim) inda num é permitida...». Depois, um prefácio a defender o Sade ao pé dum outro contra ele, a não ser uma montagem erudita de textos e glosas de textos (do que se encarregará por certo o David), em sete páginas máquina sete prazo dez dias dez, terá de exprimir-se num resumido depoimento. Por que sou eu a fazê-lo? que títulos me darão tal cabimento, subida responsabilidade? Um apenas agora me ocorre: ter sido, ao que suponho, o primeiro editor português dum texto do Sade, e nessa suposição vai muita honra para mim, embora o texto fosse pequenino, numa tradução cuidada, a edição bonita. Honra minha: porque já havia Sade publicado e lido em 1820. E para depois, em 1870, essa geração literária, e em 1910 com gritos à Libârdade, e por aí adiante – até ao libelo proibitivo do Sr. Dr. Manso, meu Meritíssimo Juiz amigável, e da Moralzinha que ele representava, defendia, propagandeava, assumia, lá sentado no seu espaldar e do muito mais que estava por detrás dele. E não li, nem sei mesmo se haverá, referências, influências manifestas, traduções ou tentativas de publicação de qualquer obra do Sade em Portugal (sadismo, sim, mas já falaremos). E no Inverno passado achei-me a ler um estrudo sobre libertinagem e esse tipo do «libertino» nacional comum, que é o marialva, do meu querido Amigo José Cardoso Pires (rigorosamente para Cardoso Pires e para mim, «marialva é o antilibertino português, privilegiado em nome da razão de Casa e Sangue, cuja configuração social e intelectual de define, nas suas tonalidades mais vincadas, no decorrer do séc. XVIII. No convencionalismo popular (ou antes pequeno-burguês) marialva é o fidalgo (forma primitiva de «privilegiado») boémio e estoura-vergas. Socialmente será outra coisa: um indivíduo interessado em certo tipo de economia e em certa fisionomia política asente no irracionalismo». Cf: «O machismo marialva passou avir à cidade com frequência «porque com o automóvel deixou de haver distâncias». E como o machismo marialva não tem diálogo amoroso (por impotência espiritual) nem técnica de sedução (por impotência intelectual), há que suprimir este entreacto necessário ao contacto amoroso. Daí a prostituição e a mulher de cabaré», comentário de António Alçada Baptista, no prefácio a Feira Cabisbaixa, do O´Neill. Pois para esta devassidão comercializada, é o Dr. Manso mai-la sua Moralidadezinha um perfeito cegueta!), onde não me lembra de ter visto sequer citado o nome de Sade um só vez; mas espero que o José Augusto na próxima edição dedique ao Divino Marquês ao menos duas palavrinhas... que antes do Laclos e do Vailland já o Sade tinha feito e escrito muita sadice, e não confunda o Leitor com sandice, apesar de ser fácil (como se viu) dar o Sade por louco e metê-lo no hospício: é o costume, quando os loucos ou pior os génios-aloucados dizem, fazem e mais perigoso: escrevem de acordo com isso coisas incómodas que todos trazem escondidas ou consideram mais catita (e prudente) disfarçar para dentro ou no segredo das alcovas. Quando muito, contar numa ronda de amigalhaços, um tanto bebidos todos. Revelar ao psiquiatra. Mas ocultar, ocultar o mais possível no reverso da lapela, como é dos regulamentos em certos sadistas contemporâneos que nós conhecemos à paisana.
Reatando e porque já me perdi em divagações fora do tema (ou não?):
Li pouca coisa do Sade, como talvez toda a gente; li alguma prosa sobre ele e do que recordo agora, das mais asnáticas uns parágrafos do Egas Moniz n´A Vida Sexual e um estudo muito embrulhado de Simone Beauvoir (em Priviléges). A sério, li um magnifico trabalho de Maurice Blanchot num Temps Moderns antigo que não consigo descobrir entre a minha papelada ou já vendi a granel, e foi republicado na colecção Arguments, sob o título La Raison de Sade. Esse é que era o prefácio que esta edição merecia, mas não talvez para Portugueses, ai de nós! Vamos, pois, ao prefácio que pedem com pressa a Luiz Pacheco e é o que ele pode e sabe e quer escrever, com gosto, com a raiva toda e alerta. E neste aviso já lá vão três páginas máquina. Óptimo!

Quem é, o que vale, que força terá, em que luta se inscreve, agora e aqui, para nós, Portugueses e Portuguesas, o Sade, uma tradução do Sade (registro: duma obra fundamental do Sade), decerto numa edição limitada e dispendiosas? Eis o primeiro problema a encarar, eis a primeira pergunta que me faço e vos faço. Falando com Fernando Ribeiro de Mello, há meses, sobre este mesmo assunto, recordo ter-lhe dito que uma tradução da Filosofia, a qual como trabalho literário achava (eu) difícílima, não iria muito longe. Precisando: iria pouco mais longe (em termos da sua projecção numa possível clientela) daqueles mesmos que leram o original. O Zé Povinho, que sabe ler e ou gosta de ouvir ler, tem A Marca dos Avelares, que nunca li, mas me dizem ser um poucochinho sadista; e, por acaso, ainda há dias me passou pelos olhos uma colectânea de textos mimeografados, (ilustrada com textos escabrosos) com uma espécie de pastiche nasalado: Um primo e duas primas... Em suma: aquilo que o portuguesinho lúbrico é capaz de produzir em tal matéria, está por culpa sua e duns tantos que nós sabemos apto a gostar, a deleitar-se sem ou sem masturbação por ela. Para subir até ao Blanchot ainda teremos alguns milhões de nós (em que me incluo) de comer muita broa, e das nossas Faculdades de Letras saem licenciados e, até, possíveis doutorandos que arejadas, para lhe meterem o dente (no Sade, acima da pura pornografia que nele há; no Blanchot, àquele alto nível de interpretação crítica). Mas vai sair agora uma tradução? Parabéns, parabéns a todos, parabéns a Você, Editor!
Quer o Meritíssimo Dr. Manso queira ou não queira, quer o Cardoso Pires lhe prefira o Laclos, O Casanova, quer as autoridades francesas queimem as edições do Pauvert – o Sade está aí, digo tudo: o Sade está entre nós. Digo o mais grave: o Sade está em todos dentro de nós. Foi essa afinal a sua grande revelação: um novo segredo humano descoberto, o homem contemplando-se numa dimensão mais real no fundo dos fundos que é o abismo da nossa alma. Escreve Gilbert Lely: «a uma centena de anos de Krafft-Ebing e Freud, «Os 120 Dias de Sodoma» facultaram-nos uma descrição sistematizada das anomalias sexuais e justificam, por isso, o relevo que o mundo esclarecido conferiu ao nome do autor, impondo o termo, sadismo à mais grave dessas psicopatias». Mas depois de Freud, o sadismo como força constitutiva da natureza humana, manifestação do motor que é a líbido, não pode ser ignorado e a gente de bom-tom fixou-lhe o nome; ela e a outra gentinha praticam-no e deixe-me que o confesse: fazem muitíssimo bem. Mas antes de irmos mais longe, de tentarmos distinguir o sadismo que o Sade propõe doutro género de sadismos, falemos do homem.

Na minha edição barata do «Diálogo entre um Padre e um Moribundo», havia um rosário de datas e factos, em que propositadamente mencionei todos os dados que o revelam um grande senhor do Antigo Regime, um feudal de boa formação religiosa, uma figura da casta social e da estirpe intelectual dum Gilles de Rais, companheiro de armas de Joana d´Arc. Um tipo de «marialava» provençal, não boçalizado e animalesco como os nossos pacóvios fidalgos de solar, mas «um homem excepcional tanto pelo seu destino como pelas suas preocupações», sublinho no Blanchot. Eivado de racionalismo, ateu, atento ao seu tempo, intervindo nele, progressivo e tão lúcido (adentro das suas obsessões) que soube logo ver que a Revolução estancara, - daí essa esplendorosa diabrite que é o grito Cidadãos, ainda mais um esforço... Sim, sim, ainda mais um esforço, e grande! Não apenas empurrar para fora uma classe (a dele, na origem), cortar muitas cabeças e erguer outra classe, outras cabeças ( e isso já foi muito). Mas a revolução permanente, isto é, a luta continuada pela libertação do homem, que deve começar por cada um em si, mas pode ser ajudada (ou contrariada) de fora, pelos outros.
Libertação contra a servidão de Deus, contra a ideia-pesadelo de Deus e dos seus acólitos terrestres, e por essa os Enciclopedistas deram o primeiro grande encontrão. – Écrasez L´infâme – e talvez chamem por isso satânico ao riso de Voltaire; libertação contra a opressão, não apenas o alargamento dos direitos (o que foi bem bom) a uma nova classe mais vasta e já não privilegiada em nome da razão de Casa e Sangue, mas ainda aqui houve uma paragem e daí que Marat e, principalmente, Babeuf, sejam geralmente relegados para segundo plano nos manuais porque também queriam ainda mais um esforço no sentido da libertação económica; tão-pouco, séculos mais tarde, a fórmula a cada um segundo as suas necessidades (novo gigantesco passo, sem dúvida) conseguiu evitar ao que consta a formação duma das sociedades mais puritanas do nosso tempo. Sade pregava mais um esforço e foi por isso mesmo que passou trinta anos de vida encafuado em prisões, sob quatro regimes diferentes, sucessivos, inimigos cruéis uns dos outros, da Realeza à Revolução, ao Terror, ao Consulado; e que a sua obra (uma dúzia de romances, na sua maior parte de vastas dimensões, uns sessenta e tal contos e novelas, duas dezenas de peças de teatro e opúsculos diversos) continui no Inferno das Bibliotecas e cerca de uma quarta parte dos seus manuscritos fosse, com o consentimento da família, lançada às chamas pela polícia do Consulado, do Império e da Restauração. Até parece que queria ser preso (cito de memória), escreve a Beauvoir, um tantinho pateta neste passo. Queria ser preso!... Mas alguém quer ser preso?! E logo na Bastilha , logo num hospício de loucos... (era Beauvoir, para seu castigo, que merecia o Nobel. Ou presa).
O que levou Sade às jaulas dos seus diversos carcereiros foi ser um libertino. Tal como o nosso Bocage, seu contemporâneo, (1) ao escrever a «Pavorosa Ilusão da Eternidade», (2) Libertino, libertinagem. Que é isto? Na Cartilha de Marialva, Cardoso Pires (salvo a omissão do Sade, o que considero calinada grossa) disseca com inteligência os termos, as situações que os definem, os grandes exemplares humanos em que se retrata, aliás seguindo a lição de Vaillant; no Laclos par luimemê, por acaso aprendi muito. O libertino não é um lúbrico, nem um devasso. Não o é apenas, embora a prática da libertinagem contenda com o sexo. Seres devassos, tarados sexuais, perigosamente devassos: recordai a indignação de Clémentine, na epígrafe do texto:«é lá possível que os mesmos a quem cumpre manter a ordem, a consigam alterar a este ponto!...». O libertino não é apenas um homem da vida amorosa, intensa ou desordenada, mas algo mais (e o Meritíssimo Magistrado do Juízo Criminal da Boa-Hora sabia-o, com certeza; daí que me tivesse avisado, daí o espaldar donde agora sentencia). É o ateu irredutível; é o que faz da sua vida amorosa um espectáculo – por atitudes, palavras ou escritos; é o que gosta dela, em suma, por isso o proclama. É o que transforma essa experiência muito acima do prazer animal num jogo calculado, numa técnica da sedução, numa aposta vital. E é um tipo inconveniente, um sem papas-na-língua (não um fala barato) porque falando com os outros e dos outros é de si e da sua Bela Vida que vai falando sempre. Porque, eis a chave, o libertino ama o amor.
O Cavaleiro de Oliveira, Bocage foram assim; eu sou à minha maneira um libertino também. E devo confessá-lo: conheço ou conheci gente devassa, libertinos muito poucos. Ia citá-los, os seus nomes não enchiam duas linhas, não vale a pena nem quero que julguem (eles próprios talvez não) que os estou aqui a apontar à Moralidadezinha ambiente.
Mas tudo isso ainda e apenas releva da polícia dos costumes, dalgum tribunal canónico. O caso é, porém, mais grave. O libertino não quer apenas mulheres ou homens ou mulheres e homens para a cama, O CORPO DO OUTRO; sob qualquer aspecto; fórmula de coito; técnicas eróticas. È um tipo livre e, como tal, porque a liberdade apela pela liberdade, um tipo que quer (queira ver, gostava, precisa de lidar com) gente livre com ele, à sua volta. Logo trata-se duma mentalidade progressiva. Isso o leva, o obriga, lhe exige estar contra todas as tiranias. (Suspendo; não como pára-raios contra as iras do Dr. Manso, mas porque há coisas que devem ser ditas e ditas quanto antes, testemunho que a gentinha mais puritana ou sacripanta em questões que bulam com o sexo que tenho conhecido, eram do tipo progressista, pertenciam ao parece que pertenciam (quem está de fora nunca sabe ao certo) a uma tal «organização ilegal e clandestina» etc., etc. Que uma rapariga casada da tal-e-coisa (dizia-se) foi expulsa (constava) porque a certa altura deixou de gostar do marido e lhe pôs os palitos; e que um dito deixou de gostar do marido e lhe pôs os palitos, e que um dito funcionário solteiro da tal-e-coisa recebia da tal-e-coisa vinte escudos (nos bons tempos em que uma virarda no Bairro Alto custava essa barateza) por semana para por semana para satisfazer as suas necessidades... isto não vi, claro, mas contaram-me. Moscovo era, ou era até há pouco tempo, li não sei onde, uma das capitais maus puritanas do Mundo).
Reatando: estamos quase a chegar ao fim das sete páginas máquina. E faltou quase tudo para dizer, confio no David (mas porque é que este rapaz não gosta do Sade?) em que ele dirá o resto que é o principal. Nem falei do Sade-escritor (mas leiam o Lely, leiam o Blanchot). Nem na acção revolucionária que desempenhou ao absolver as sogra que o perseguiu com uma fereza de que as mulheres Às vezes parece que só elas atingem e da qual só elas detêm o segredo. Leiam a biografia que vem na nossa Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira e é um mimo. Leiam o Sade.
O Sade é exemplar, mas não é um bom exemplo. Digo: um exemplo fácil de imitar, que nos alicie a seguir-lhes as passadas: o caminho antolha-se-nos povoado de fantasmas e pesadelos horríveis, desde as aberrações (um painel! e tão variado!) à loucura. No referido estudo de Maurice Blanchot, sublinhemos alguns princípios da moral da Sade: «Tudo é bom quando é excessivo»; outro: «Numa vida perigosa, o que importa é nunca nos falecer a força necessária para ultrapassar o derradeiros limites». Ainda mais um: «Todos esses grandes libertinos que vivem apenas para o prazer, são grandes somente porque aniquilaram em si qualquer capacidade de prazer». Conclusão: o libertino é um solitário. Pessoalmente, do ponto de vista do comportamento intersexual, prefiro o Valmont, o Julião Sorel. Mas deixemos agora o Sade; tratemos do sadismo. Ou antes: dos sadismos.
O homem lobo do homem é verdade muito antiga. O Sade tirou-a cá para fora (como o Freud fez depois com a líbido) e exclusivamente encheu páginas e páginas (teve tempo, coitado! em trinta anos de cárcere; e nem sei como certos nossos escribas conseguem escrever tanto, andando sempre cá por fora e ainda bem! E com vários outros empregos à mistura e ainda melhor!) a demonstrar-nos os infortúnios da virtude, essa perigosa chatice. Ou, elevando o tom e sacando do Blanchot: «Pour Sade, l´homme souverain est inaccessible au mal, parce que personne ne peut lui faire de mal; il est l´homme de toutes les passions, et ses passions se plaisent à tout.» E linhas adiante: « L´homme de l´égoisme intégral est celui qui sait transformer tots les dégoûts en goûts, touts les répugnances en attraits.» («Lautréamont et Sade», pág. 28). E na pág. 41 sublinhemos: «Si le crime est l´espirit de la nature, il ný a pas de crime contre la nature et, par conséquent, il n´y a pas de crime possible
A virtude nunca recompensada: não estou de acordo, nisto sou anti-Sade também. A crueldade como fonte de prazer (sexual), como método de conhecimento (próprio ou alheio), como regra de conduta integralmente egoísta: eis alguns dogmas da ética de Sade que repugna aceitar na sua totalidade. Mas o espectáculo quotidiano que o nosso tempo nos proporciona é tal ética ser levada a uma escala que subjuga milhões de indivíduos e já começa a extravasar do globo terrestre para nos girar ameaçadoramente por cima das cabeças; ao que temos assistido, confirmando esse fundo feroz em todo o bicho humano (coexistente com o seu simétrico, que é a nossa capacidade de sofrimento e resignação passiva), é à crueldade como técnica de aniquilamento em massa. Estamos instalados n´o tempo dos assassinos, anunciado pelo poeta-vidente. E apesar de poder citar exemplos nacionais, prefiro trazer aqui esse tal Ministério do Interior marroquino, Ufkir de sua graça. A vontade de potência, o desprezo pelo sofrimento alheio se esse sofrimento me dá prazer, os jogos da cama, no seu rol repleto de todas as anomalias, de todos os desvios, de todas as possibilidades humanas, ponhamo-los na conta do Sade; é sadismo, reduzido embora na sua expressão prática a uma fase simples, mais animalesca. Mas quando os assassinos sobem muito alto, como o tal Ufkir, o perigo para nós cresce na razão directa da altura da órbita onde giram e do carburante de que dispõem e da vontade de destruição e ódios que levam dentro e nos atiram para cima. Na resignação com que os olhamos de nariz no ar, na inanidade acautelada com que assistimos às suas façanhas, somos todos cúmplices – duma maneira ou de outra.
Não andei muito por fora, mas vi qualquer coisa e tenho andado cá dentro do País (o nosso) e da Vida (a minha, e outras). Posso dizer duas palavrinhas mais?
Esta edição do Sade em Português não aumentará o sadismo do nosso povo, nem a sua devassidão. Porque, para dizer tudo, somos um povo cruel, somos um povo devasso. Talvez venhamos a ser, agora, com a leitura meditada destas páginas depois um pouco mais, ou uns tantos mais, libertinos.
Um povo cruel? Está à vista. Há provas, até há fotografias horripilantes. E com uma razoável tradição de crueza: leiam O Encoberto, de Sampaio Bruno, e ali encontrarão matéria de espantar, de como o lisboeta da época assistia regalado, com certo gáudio, aos autos-de-fé na Ribeira.
Um povo devasso? Em terras de Santa Maria?! Lendo avidamente ainda A Rosa do Adro, As Pupilas do Senhor Reitor, idílicas aguarelas da nossa amorosidade rural?! Pois leiam um artigo do Camilo, a gozar o bom do Júlio Diniz, intitulado A Moralidade nas Aldeias. Vão lá, não como turistas, de passagem, mas lidem com eles e elas. E não caio na demagogia de carregar, em trâmites de luxuria, nas classes altas (digo: do dinheiro) que ao contrário dos livrecos neo-realistas não são mais devassas do que as baixas (digo: os pobretanas). Trata-se duma refracção da inveja ou do distanciamento, ou ignorância: a gente do dinheiro perde tanto tempo a pensar nele que por vezes nem arranja um quarto de hora livre para gozos rabelaisianos. São castos por dever de ofício. Gentinha altamente perigosa, estas criaturinhas castas!
Podia trazer aqui casos quase incríveis da vida nos campos, onde se desconhecem os nomes técnicos, clínicos, às coisas, mas as fazem. E, para mim, são estes os melhores: porque as fazem. Na inocência animal, na força imediata dos instintos.
Povo cruel, povo devasso: tudo tem seu reverso, a sua face positiva. E como é um povo que eu gosto, nem quero outro, aqui ponho mais duas larachas em estilo filosofante:
Povo cruel: logo sem civilização. Lá iremos a pouco e pouco, talvez ingressando no Mercado Comum... Mas isso quer também dizer, e parece que o faziam desde tempos do Viriato, povo com certo desprezo pela vida, a alheia de preferência, mas também a própria. Ora o desprezo pela vida, de que davam claras mostras os indígenas, os celtiberos ou lá o quem fosse, contra os invasores quaisquer estes fossem, o desprezo pela própria vida quando assim se afirma como manifestação de vitalidade, de sobrevivência duma raça, é coisa muito de louvar. Não é de patriotismo que se trata, que é sentimento facilmente explorável para fins temerosos e mesquinhos. Mas, por acaso, tenho aqui a meu lado Mestre Ortega y Gasset, que me ensinou e pode ajudar a esclarecer a questão: «No he sido nunca nacionalista; pero he sido siempre nacional, y esto significa para mí sentir un entusiasmo siempre renaciente ante las docenas de cosas españolas que están verdaderamente bien y un odio inextinguible hacia todo lo démas que está verdaderamente mal.» E adiante: «Porque no hay duda: se pertenece a un pueblo, se es propiedad de una nación.» E mais adiante:«Nada español me es ajeno; todo forma parte de mí.» (Obras Completas, tomo V, pags. 242, 243). Assim eu, se me dão licença, por cá connosco.
Povo devasso: à beira da animalidade ou do vício, portanto. Mas também isso tem seu lado belo: um povo que não se deixou castrar em séculos e séculos duma religião castradora ( e o Padre Amaro é repugnante não por fornicar com a Amélia, que era da ordem natural das coisas, mas por obrigá-la ao aborto, por perdê-la com medo das consequências sócio-económicas da sua ligação).
La Philosophie dans le Boudoir agora em português talvez por isso venha a ser um livro útil. Não será manual recomendável para meter em mãos infantis ou de adolescentes, embora nos esteja fazendo muita falta urgentemente um livrinho (fácil: basta copiar, adaptar, o que se está a editar nesse campo; no Brasil por exemplo) que ensine aos impúberes o que é isso do sexo, porque forçosamente (e a preciosidade erótica da fêmea portuguesa é grande, nos rapazes segue-lhe os passos; é ver esse casalinho ela de 14, ele de 11, que fugiu há dias para uma turné amorosa e os púdicos dos nossos jornais não contam como eles dormiram...) alguém lho ensinará. E por certo da mais libidinosa maneira.
Voltando ao Sade: leiam-no. Não se masturbem mais do que os suficiente para poderem ainda ficar depois o suficientemente lúcidos para o apreciarem e meditarem para fora e muito acima da pornografia. O Sade também ensina a pensar, a conversar, a desfibrar em nós e perante os outros molas ocultas que somos ainda nós, quer o saibamos quer não, quer o queiramos quer o detestemos. Bifando ainda ao Blanchot: «Não diremos que o pensamento de Sade seja viável. Mas revela-nos que entre o homem normal que encerra o homem sádico num impasse e o sádico que faz desse impasse uma solução, é este quem sabe mais e melhor acerca da verdade e da lógica da sua situação e que possui dela uma inteligência mais profunda, a ponto de poder ajudar o homem normal a compreender-se a si próprio, ajudando-o a modificar as condições de toda a compreesão». Por outros termos, o pensamento de Sade ajuda-nos diante do nosso espelho a medirmos melhor a grandeza da nossa condição. Na alegria da comunicação com o Outro que só o sexo permite, só na cama se totaliza, porque é (quando é) a posse e a entrega absolutas. A nossa verdade: in sexu veritas.

Luís Pacheco

(1) – Sade: 1740-1814: Bocage 1765-1805. Outros libertinos notórios: Laclos 1741-1811, Casanova: 1725-1798, Cavaleiro de Oliveira: 1702-1783. Fazendo as contas, verifica-se (com susto) que lá fora os libertinos atingem idades provetas e cá dentro não passam dos 40. Aí fica o aviso.

(2) – Copio de um calhamaço: «Bocage exalta a Revolução francesa; anciava pela «Liberdade, mãe do génio e prazer», cantava em Bonaparte o novo redentor da natureza», atacava «o feroz Despotismo», o «danado Fanatismo», e não contente de com sanha incansável doestar os frades, negava a eternidade das penas, na célebre epístola que começa «Pavorosa Ilusão da Eternidade».

David Mourão-Ferreira contra Sade


O prefácio que David Mourão-Ferreira(na foto) escreveu para a edição da Filosofia na Alcova:

Contra Sade

Não me atrevo decerto a contestar que Sade seja um grande escritor. E, mais ainda que um grande escritor, uma personalidade-padrão, uma figura emblemática, uma espécie de farol. Acho mesmo que devia ser declarado – como os faróis – objecto de utilidade pública. Ele tem, com efeito, o alto mérito de assinalar, à navegação nocturna dos nossos instintos, a existência dos piores baixios ou de correntes perigosíssimas. E, todavia, o seu espectáculo desagrada-me.
Em 1930, Mário Praz observa que «faltam a Sade», como escritor, «as qualidades mais elementares». No mesmo ano, Jean Paulhan profecia estoutro juízo: «um escritor que é preciso colocar sem dúvida entre os maiores». Embora contraditórias na aparência, estas duas opiniões podem perfeitamente conciliar-se - e ambas serão, e meu ver, igualmente defensáveis. Se entender-mos por «qualidades elementares de um escritor» a originalidade da expressão linguistica ao nível do estilo, a variedade e a riqueza da imaginação, a capacidade e agenciar e estruturar as partes num todo harmónico – é inegável, no que tange a Sade, que Mário Praz tem inteira razão. O estilo do «Divino Marquês» apresenta-se, em geral, de uma chateza confrangedora, estereotipado e uniforme, tecido de constantes «clichés», sem o risco pessoal daqueles pormenores concretos e daquelas transposições metafóricas que dão relevo e surpresa à linguagem. Po outro lado, o seu «mundo» romanesco revela-se bastante circunscrito, aflitivamente esquemático, regido por leis quase mecânicas. Quanto à estrutura, não há obra sua que não peque pelo desequilíbrio das diversas partes que a compõem, ora com longas digressões abstractas a comprometerem os elementos da ficção, ora com o amontoado de cenas ou situações excessivamente semelhantes ou paralelas. Mas a verdade é que um escritor se define apenas por estas (ou outras) «qualidades elementares». O estilo de um Stendhal, só por si, não convidaria ninguém a penetrar na fruição da sua obra; e Tostoi, segundo parece, estava muito longe de escrever convenientemente. Por sua vez, o «mundo» romanesco das novelas de cavalaria ou o da Condessa de Ségur, ou o da qualquer outra forma narrativa de edificação moral, não se mostra nem mais diversificado nem mais rico de matizes que o do Marquês de Sade; e, se tal acontece com obras empenhadas na cruzada do Bem, porque há-de exigir-se mais de uma que tão-só pretende erguer o pendão do Mal? Dos defeitos de composição e de estrutura bastará dizer não são eles, com certeza, que nos impedem hoje de ler o nosso Camilo. Um escritor pode ser um grande escritor, a despeito da ausência dessas (ou outras) «qualidades elementares». Pode sê-lo mesmo a despeito da ausência de todas elas, desde o momento que tenha sabido, trazer à superfície os minérios que ele escondia e expô-los de tal modo que a humanidade reconheça neles – com júbilo, com espanto ou com horror – a própria ganga de que também é feita. Este, o caso de Sade.
Mas a sua fortuna, durante muito tempo, foi apenas subterrânea. Sistematicamente relegado para as turvas galerias da patologia sexual, convertido em etiqueta de sumários diagnósticos, consultando as mais das vezes a título de documento ou transmitido, de mão em mão, sous le manteau, como pornográfica mercadoria, o Marquês de Sade só neste século passou a ter ingresso nos manuais de história literária, nos dicionários de literatura, nas mais austeras colecções de ensaios. «Este homem», dizia Apollinaire, em 1909, «que pareceu nada significar durante todo o século dezanove, bem poderá dominar o século vinte...» Hoje ninguém ignora como saiu certa a profecia. Cerca de 1950, Bertrang d´Astorg sublinhava que «a sua importância deriva do facto de o nosso tempo se mostrar particularmente atento a todas as manifestações da sexualidade que desembocam na criminalidade»; e acrescentava: «Deriva do facto de o universo sádico ser também um universo do absurdo (...) e um universo totalitário, (...) concentracionário. Este universo é o dos trabalhos forçados do prazer». Mais adiante, o mesmo ensaísta observava ainda que «O Marquês de Sade pressentiu a imediata proximidade de universo concentracionário puro, isto é aquele em que o trabalho físico teria por finalidade aniquilar a vítima», concluindo então que «por estes aspectos e alguns outros, Sade é um autor essencialmente contemporâneo, que apenas podia se compreendido pela nossa geração». Quem sofreu a experiência de Dachau e de Auschwitz, quem sofre ainda hoje – a Oeste ou a Leste da Cortina de Ferro – a experiência de outros campos mais discretos ou por enquanto menos famigerados, quem pelo menos conheça o relato desses horrores ou simplesmente vive no tempo em que eles decorrem – encontra-se, com efeito, em situação tristemente privilegiada para melhor compreender o universo de Sade. Mas não só esses: também aqueles que mais ou menos têm contactado com certas formas «modernas» de «prazer» colectivo. Recordo, por exemplo, como já há perto de três anos evoquei, «o suspeito esplendor da vida nocturna de Berlim Ocidental, o rio de luzes e de tentações da Kurfürstandamm, o frenesim de quem procura atordoar-se, como se não houvesse dia seguinte» - e vejo, nesse e em outros espectáculos que se lhe assemelham, adequados cenários para os frenéticos heróis de Sade. Nosso contemporâneo? Mais que isso. Como reza o título de um ensaio de Pierre Klossowski: Sade meu próximo.
Contudo, a compreensão do nosso próximo não há-de necessariamente implicar amor; e muito menos canonização. No entanto, em nossos dias, a respeito de sade, é isso mesmo que mais e mais se verifica. Por meu lado, se tivesse de sugerir a alguém uma espécie de método para ler as suas obras, creio que diria mais ou menos isto: «Pára. Repara. Olha bem. Vê no que podes transformar-te. Vê a que abismos te pode conduzir o erotismo sem amor. Vê como é estéril o mundo-dos-sentidos-sem-mais-nada. Como é grotesco e desumano. Não é decerto aí que hás-de encontrar a salvação».
Mas, a breve trecho, havia de sentir-me envergonhado por declamar semelhantes palavras. Sade, em mim, tem o condão – deveras vexatório – de me provocar muito bons sentimentos. É também isso que não lhe perdoo. É mais um motivo por que estou contra ele.

Outro livro sobre a corneação

Quadro Analítico da Corneação, de Charles Fourier (Besançon, 1772 — Paris, 1837). Edição & etc, 1984, Colecção Contramargem, n.º 14.


Dos Cornudos: suas espécies e tipos, de Charles Fourier. Edição da Cavalo de Ferro.


Rol de Cornudos por índice

A
cornudo à aero-sol
cornudo abaixo de cão
cornudo abandonado
cornudo abatido
cornudo à borguinhesa
cornudo acelerado
cornudo acobardado
cornudo açofaifa
cornudo adamascado
cornudo aderente
cornudo adorado
cornudo à écloga
cornudo à frederica
cornudo agrícola
cornudo agropecuário
cornudo à laia de burra vestida de saias alcoólico
cornudo alcoviteiro
cornudo alérgico
cornudo alfazema
cornudo alma do purgatório
cornudo aluado
cornudo alvorotador
cornudo amnistiado
cornudo à moscovita
cornudo angélico
cornudo ao sabor do que lhe dá nos cornos apóstata do bom sentido
cornudo à parisiense
cornudo aproveitador dos restos
cornudo à provençal
cornudo arrependido
cornudo asséptico
cornudo à tango lamentoso
cornudo áugure do sexo das criancinhas avejão
cornudo avestruz
cornudo à xadrez

B
cornudo badameco
cornudo bajulador
cornudo benigno
cornudo bonacheirão
cornudo borralheiro
cornudo brigão
cornudo brilhantinas
cornudo Brown-Sequard
cornudo bucólico
cornudo busantropo




C
cornudo cagão

cornudo calderoniano
cornudo camaleão
cornudo canonizado
cornudo carabineiro
cornudo caracol
cornudo casto
cornudo catecúmeno
cornudo catequizado
cornudo cenestésico
cornudo cenestopata
cornudo cinegético
cornudo clister
cornudo coadjutor
cornudo cominho
cornudo com patente
cornudo com pintas
cornudo com sezões
cornudo comunista
cornudo com vocação de sobrevivência consentido
cornudo constelação
cornudo continental
cornudo contra natura
cornudo converso
cornudo convertido
cornudo cordeiro imolado
cornudo coríntio
cornudo corneta
cornudo cornetim
cornudo coroado de pâmpanos e rosas cortês
cornudo coruja
cornudo cosmopolita
cornudo crapuloso
cornudo crédulo
cornudo culpador
cornudo curado

D
cornudo das amplas ramificações
cornudo da sopa do convento
cornudo da Virgem Senhora
cornudo de altos voos
cornudo de boas maneiras
cornudo de bom estofo
cornudo de campo e praia
cornudo de castigo
cornudo de confiada evidência
cornudo defensor do vínculo
cornudo de grosso calibre
cornudo de horta
cornudo democrata
cornudo democrata-cristão
cornudo depressivo
cornudo de regadio
cornudo descalcificado
cornudo desemparelhado
cornudo de sequeiro
cornudo desesperado 68
cornudo de sinais exteriores
cornudo de Verão
cornudo diabético
cornudo diana
cornudo dissimulado
cornudo do Entrudo
cornudo Dom Tancredo
cornudo dórico

E
cornudo efeminado
cornudo egoísta
cornudo embandeirado
cornudo embusteiro
cornudo em desgraça
cornudo empata
cornudo enfeitiçado
cornudo engatatão
cornudo envergonhado
cornudo epiléptico
cornudo equânime
cornudo escamoteado
cornudo esfarrapado
cornudo esfregão
cornudo espelho de cavaleiros
cornudo espevitador
cornudo esquerdista
cornudo estival
cornudo estragador
cornudo estupefacto
cornudo Eurítion
cornudo executivo
cornudo exótico

F
cornudo fantasma
cornudo farto
cornudo fascista
cornudo fatalista
cornudo figurino
cornudo filantropo
cornudo florido
cornudo fogueteiro
cornudo folgazão
cornudo fulminante

G
cornudo galinha-tonta
cornudo girino
cornudo ganancioso por comparação
cornudo geleia
cornudo godo
cornudo gorjeta
cornudo gótico
cornudo gótico flamejante
cornudo gótico florido
cornudo grão-turismo
cornudo Guadiana

H
cornudo herdeiro
cornudo hierárquico
cornudo hiperclorídrico
cornudo hipnótico
cornudo hipócrita
cornudo honoris causa
cornudo hospitaleiro

I
cornudo imaginário
cornudo importante
cornudo impotente
cornudo impróprio
cornudo inacessível ao desalento
cornudo indultado
cornudo invernal
cornudo isca

J
cornudo jambo
cornudo javali
cornudo javalizinho
cornudo jeremíaco
cornudo jónico
cornudo jubilado
cornudo jubilar

K
cornudo kaiser
cornudo kantiano
cornudo klinefelter
cornudo krausista

L
cornudo lagartão
cornudo lagartixa
cornudo lagarto
cornudo lateiro
cornudo legal
cornudo liberal
cornudo liberto
cornudo licantropo
cornudo lírico-cómico-dançante
cornudo lobo
cornudo luminoso

M
cornudo malabar
cornudo malhado
cornudo mama-mansinho
cornudo mamarracho
cornudo manchesteriano
cornudo mapa-múndi
cornudo melhorado
cornudo menstruado
cornudo meteorológico
cornudo meticuloso
cornudo metralhadora
cornudo mexeriqueiro
cornudo milagreiro
cornudo mimado
cornudo minucioso
cornudo misantropo
cornudo misógino
cornudo moçárabe
cornudo Moersch-Woetman
cornudo molinista
cornudo mourisco
cornudo mudéjar

N
cornudo nabiça
cornudo nato
cornudo náufrago
cornudo nazi
cornudo necessitado de ternura
cornudo noctívago
cornudo no próprio molho
cornudo notarial
cornudo nutritivo

O
cornudo objecto
cornudo oficiante de compaixão
cornudo Ogino
cornudo optimista
cornudo ortodoxo
cornudo ortopédico
cornudo otorrinolaríngeo
cornudo outonal

P
cornudo pactuante
cornudo pagão
cornudo pai de família
cornudo paladino
cornudo palmípede
cornudo panteísta
cornudo papa-hóstias
cornudo paradoxal de Russel
cornudo parasita
cornudo pardal-dos-telhados
cornudo pária
cornudo pasmado
cornudo pateta alegre
cornudo perfurante
cornudo peripatético
cornudo pêro manso
cornudo perplexo
cornudo piadético
cornudo Pigmalião
cornudo pirenaico
cornudo Piritoo
cornudo Piscis
cornudo pistola automática
cornudo pomba
cornudo pombo
cornudo pobretanas
cornudo por impossibilidade de dar mais
cornudo por prescrição
cornudo por prescrição facultativa
cornudo por razões de amor
cornudo por tabela
cornudo por usucapião
cornudo possesso dos demónios
cornudo postal
cornudo póstumo
cornudo preceptor
cornudo precipitado
cornudo preconizado
cornudo pregador dos bons costumes cornudo pregando no deserto
cornudo pregoeiro
cornudo premonitório
cornudo pré-nupcial
cornudo presumido
cornudo pretensioso
cornudo primaveril
cornudo pro divo
cornudo psicossomático
cornudo pulverizado
cornudo puro e simples

Q
cornudo que às tantas abre os olhos
cornudo que grita «puta que a pariu!»
cornudo que tomou ordens maiores
cornudo quietista
cornudo quinhentista
cornudo quiritário

R
cornudo ralé
cornudo raivoso
cornudo real
cornudo recalcitrante
cornudo receoso
cornudo recolecto
cornudo reformista no poder
cornudo refrescante
cornudo refrigerado
cornudo regozijado
cornudo remeloso
cornudo reumático
cornudo românico
cornudo romântico
cornudo rouba-pêras
cornudo ruiva Margot

S
cornudo saca-rolhas
cornudo sacana
cornudo salvo
cornudo sanguessuga
cornudo Schaeffer
cornudo sebento
cornudo selectivo
cornudo semáforo
cornudo sempre pronto a bater palmas
cornudo sentinela
cornudo seringa
cornudo sifilítico
cornudo simpático
cornudo simplório
cornudo sob pousio
cornudo social
cornudo social-democrata
cornudo socialista
cornudo soldado desconhecido
cornudo solteiro
cornudo sórdido
cornudo subconsciente
cornudo subtil
cornudo suplicante
cornudo surrealista
cornudo susceptível de contágio de amor

T
cornudo tecnocrata
cornudo testa-de-ferro
cornudo tímido
cornudo tísico
cornudo tradicional
cornudo translatício
cornudo tratável
cornudo travestido
cornudo troca-tintas
cornudo trombone
cornudo trompete

U
cornudo ulcerado
cornudo ultra

V
cornudo vegetal
cornudo veraneante
cornudo vigonho
cornudo vil
cornudo vingador
cornudo vingador indirecto
cornudo virtuoso
cornudo viscoso
cornudo vitoriano
cornudo vocacional

W
cornudo wagneriano
cornudo Westphal-Strümpell

X
cornudo xenófobo
cornudo xifóide

Z
cornudo zaragateiro
cornudo zero à esquerda
cornudo Ziehen-Oppenheim

Rol de Cornudos, de Camilo José Cela

(edição de Março de 1978)



Tradução de José Martins Garcia
Capa: Cid
Colecção Autores I
Edição e arranjo gráfico de F. Ribeiro de Mello/Edições Afrodite

Na contracapa

ROL DE CORNUDOS é um livro invulgar, talvez único no âmbito da literatura espanhola, um livro que só o génio, a audácia e a prodigiosa erudição de Cela podiam realizar. ROL DE CORNUDOS apresenta, à laia de dicionário – para facilidade de manejo e como garantia de rigor científico –, uma impressionante galeria de cidadãos vítimas mais ou menos conscientes da instabilidade sentimental das esposas. Os protagonistas são classificados em tipos e subtipos, com as respectivas características minuciosamente definidas e estudadas. Com a paciência, a tenacidade e a assombrosa documentação com que Lineu empreendeu a classificação de outras espécies zoológicas menos nobres, Camilo José Cela lança-se à tarefa de catalogar a selvática abundância de bravos ou mansos, baseando-se em textos clássicos, na abundante literatura oral ou num esforço obstinado de confirmação original. Só ficam fora do catálogo algumas variedades atípicas e extravagantes que agora começam a aflorar sem caracteres definidos, porém com exemplar descaramento. Logicamente, um livro como este, baseado na observação directa e pujante da realidade, nunca poderia esgotar a matéria. ROL DE CORNUDOS, como todos os grandes livros, pode ser abordado pelo leitor segundo variadíssimas perspectivas. Desopilante, altamente divertido, com a imensa graça de que só Cela é capaz, nele transparece sempre, sob o sarcasmo quevedesco, uma ternura subterrânea, um afã quase humilde de compreensão para com uma casta de marginalizados que em nenhuma ideologia se enquadram, sendo além disso, dadas as características específicas do caso, de mui difícil homologação sindical.
ROL DE CORNUDOS será uma revelação insuspeitada depois de vários séculos de inflação calderoniana. Abundantíssima, riquíssima quanto a variedades, diversificada em atitudes e intenções, trata-se duma fauna real que o espanhol comum associava sempre a castas hiperbóreas e a outras monstruosidades sentimentais.

Compramos


Para completar a colecção das Edições Afrodite, procuramos os livros que se apresentam na lista que se segue.

Se alguém tiver para venda (também aceitamos ofertas!) deve contactar pelo mail: ricardojorge7@sapo.pt

Tanta falta nos fazem:

Nova Recolha de Provérbios Portugueses e Outros Lugares Comuns, 1986, 2ª Edição com prefácio de Moisés Espírito Santo

Alecrim, Alecrim aos Molhos... - José Martins Garcia, 1974

Lugar de Massacre - José Martins Garcia, 1975

Direitos do Homem – Declaração Universal dos Direitos do Homem / Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1978

Rol de Cornudos, Camilo José Cela, 1978

Sociologia do Comunismo - Jules Monnerot, 1978

A Massagem Sensual – Hans Parker, 1984 (Corpo Solar)


Colecção Cabra Cega (Infantil)

1 – Conversas Com Versos – Maria Alberta Menéres, 1968

2 – Afinal o Castelo Era Verdade – Júlio Moreira, 1968

3 – Os Quatro Corações do Coração – Ricardo Alberty, 1968

4 – Perrault Vai Contar – Maria Alberta Menéres, 1969

7 – Histórias de Bichos em África – Tomáz Ribas, 1970

9 – A Nuvem e o Caracol – António Torrado, 1972

10 – Uma Rosa Na Tromba de um Elefante – António José Forte, 1971

Novo balanço


Agora que alcançámos as 15 500 visitas e 35 000 page views, impõe-se um novo balanço, referindo os que nos últimos meses deram uma maõzinha na construção desta página.
Agradecemos, mais uma vez, ao insone hmbf, pelo cinzeiro azul, pela ajuda técnica e pelo contacto com Rui Almeida, autor de preciosas colaborações na elaboração de alguns posts.
Bem haja para alguns blogs que nos dedicaram alguma atenção. Foi o caso de A Vez do Peão, num belo destaque no balanço de 2007. Outros blogs para o Afrodite fizeram posts ou links: Influxos, Blogtailors e Canto Escuro. Agora estamos também nas páginas dos alfarrabistas, 1870 Livros e Lumiére.
Uma especial nota para a página de Miguel de Carvalho, livreiro antiquário de Coimbra, que agora apresenta uma montra de livros das Edições Afrodite. Basta aceder através da pesquisa no campo "Search", com a palavra Afrodite.

Marx Contra Marx, de Marc Paillet

(edição de Maio de 1977)



Tradução de Rafael Gomes Filipe
Capa de A. Dias
Colecção Doutrina / Intervenção
Edição e arranjo gráfico de Fernando Ribeiro de Mello / Edições Afrodite

Na contracapa


As convulsões a que assistimos neste fim de século serão o anúncio de uma nova era?
No Mundo Ocidental, a vitalidade do «neocapitalismo» parece acarretar novas contradições; e os tecnocratas ascendem às grandes empresas e à gestão do Estado. No bloco «comunista», desvios e violências acompanham o desenvolvimento espectacular; o estalinismo reacende-se, o maoismo avança, cresce a omnipotência dos burocratas. Por toda a parte ganham espantosa amplitude os conflitos civis, raciais e religiosos, facto assaz revelador da fundamental crise e civilização que se traduz no confronto de dois Impérios.
Marc Paillet, que utiliza a metodologia marxista, chega a conclusões opostas às previsões clássicas do marxismo quanto a um futuro socialista e proletário. Para Marc Paillet o mundo já nos apresenta uma sociedade original dominada por uma nova classe: a tecnoburocracia.
Nesta sociedade, que possui uma organização, estruturas e contradições específicas – como Marc Paillet nos demonstra -, ainda haverá alguma esperança no socialismo? Se tal esperança existe, a sua realização exige bases doutrinárias diferentes e uma estratégia de classes inteiramente nova.

Luiz Pacheco por Serafim Ferreira


Na continuação do Capítulo 12 dedicado a Fernando Ribeiro de Mello, Serafim Ferreira em Olhar de Editor, prossegue o texto recordando Luiz Pacheco (na foto).

Mas, por ter andado muito ligado ao editor da Afrodite, nos altos e baixos da sua condição de escriba, tenho forçosamente de lembrar a vida de editor pobre, e não apenas dos seus próprios livros, levada e conhecida por Luiz Pacheco, que não sei se algum dia o conheceste ou com ele falaste. E ficas já a saber, meu bom Silveira, que sendo ele Luís de nome próprio como tu, este Pacheco de quem se torna inevitável que dele fale nesta narrativa teve uma vida de sete e mais fôlegos, padeceu o que nem ao diabo lembra, mas fez a sua travessia na coerência e justa pretensão de publicar alguns bons livros que fez chagar ás mãos de muita gente através de um ficheiro bem organizado e em trabalho artesanal de largos anos. Editou o livros que mais lhe agradaram, alguns assinalaram mesmo a estreia literária dos seus autores (Herberto Helder, Manuel de Lima, António Tavares Manaças ou Carlos Wallenstein), e devo dizer-te que foi ainda companheiro e amigo de poetas e pintores ligados ao surrealismo português.
E sempre te digo que Luiz Pacheco frequentou o Liceu Luis de Camões, e a cada passo não deixava de proclamar que teve excelentes professores com Câmara Reys em Literatura, Delfim Santos em Filosofia e João de Brito em Latim, mas confessará mais tarde que nunca envergou a farda da Mocidade Portuguesa porque o pai era muito forreta e o dinheiro não dava para tudo, concluiu o liceu sem chumbar nenhum ano, e nesse desejo de continuar a estudar entrou no curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras, onde teve colegas como Mário Soares, Urbano Tavares Rodrigues e Artur Ramos. Depois, em mil novecentos e quarenta e seis, sem concluir o curso, ingressou na Inspecção dos Espectáculos como fiscal e depois como terceiro oficial, manteve-se em funções uns treze ou catorze anos, mas foi em mil novencentos e cinquenta que Luiz Pacheco iniciou a actividade de editor da Contraponto ao publicar os dois únicos números dos “Cadernos de Crítica e Arte”, com colaboração de Augusto Abelaira, Vasco Vidal, Artur Ramos, Jaime Salazar Sampaio e Eugénio Cardigos.
Olha, meu caro, foi assim que ficou assinalado o começo da aventura editorial que para Luiz Pacheco não teria sossego, no irregular aparecimento das edições, mas serviu no correr dos anos para publicar com essa chancela os seus próprio livros, a par de textos de autores pouco conhecidos como Apollinaire, Castelao, Durrenmantt, Ionesco, Jaspers, Kleist, Sade, Suassuna, César Vallejo, Pablo Neruda ou Tchekov. E, daqui em diante, meu amigo, creio que não importa muito falar dos atropelos da vida pelos descaminhos conhecidos nas casas e quartos alugados que o autor de Textos Malditos teve em Lisboa, Massamá, Caldas da Rainha, Setúbal, Montijo e noutras paragens, nem dizer das mulheres e filhos que vieram, das desgraças e amarguras sofridas, dos peditórios feitos de papel estendido para solicitar a ajuda que não chegou ou veio tarde, como disso falara em “O Que é o Neo-Abjeccionismo”, texto que foi dado a conhecer por Mário Cesariny, na Casa da Imprensa, em trinta de Março de sessenta e três, onde Pacheco confessava ou não deixava de reclamar:

Tenho trinta e sete anos, casado, lisboeta, português. Estou na cama de uma camarata, a seis paus a dormida. É asseado, mas não recebo visitas. Também não me apetece fazer visitas. A ninguém. Estou bastante só. Perdi muito. Perdi quase tudo.

E talvez nem interesse agora falar-te, meu caro, das muitas doenças e internamentos hospitalares em Coimbra ou Torres Vedras, mesmo das prisões por desvarios amorosos ou atrevimentos que Luiz Pacheco conheceu na Cadeia Civil das caldas e no Limoeiro, porque de tudo isso soube ele falar em belíssimos textos marcadamente autobiográficos, e o que perpassava nos seus livros é a verdade sincera do que viveu dentro de si mesmo, numa dolorosa experiência feita e sofrida, e assim fazendo da literatura esse corpus essencial de uma obra que facilmente se não integra nos modelos tradicionais e normais padrões de comportamento.
Olha, talvez estejas de acordo comigo, tu que do Luiz Pacheco leste e bem Crítica de Circunstância e Textos Locais, porque de um e de outro desses livros me falaste com vivo entusiasmo, prometeste mesmo escrever sobre eles e afinal não publicaste uma linha, mas no fundo não lhe cabe a honra nem a glória pelo caminho percorrido ou pelos livros que pôde editar, tudo foi fruto das circunstâncias dessa aventura poucas vezes atapetada de rosas, sempre marcada por um viver quotidiano quase à beira do abismo, arrastando quem de si estava mais perto, ou seja, a sua tribo ou comunidade na presença de várias mulheres e muitos filhos às costas.
Autor polémico e sempre interventor no plano literário e editorial nos últimos quarenta anos, Luiz Pacheco permanece como editor de textos muito próprios, por vezes ditados pelo calor da amizade e desejo de não esquecer os amigos que andaram em sua companhia, como aconteceu com a reedição na Contraponto de Relógio de Cuco de Virgílio Martinho ou de Memorando Mirabolando, livro que é um misto de memórias e de intervenção cultural, ou O Uivo do Coiote, que Acácio Barradas pôde prefaciar. E assim te reafirmo que, pela sua posição crítica, literária e cultural, Pacheco consolidou ou deu a conhecer, sem nada ter escondido, uma certa maldição ou o seu expressivo atrevimento, jamais se acomodou dentro de padrões que fizessem desviar o sentido desse pessoal discurso ou aliviassem os propósitos irónicos e críticos dos seus textos. E, vencida a curva da idade em mais de setenta anos de vida, aflito e angustiado no meio dos seus achaques, Luiz Pacheco deseja por fim ter a tranquilidade que merece num “lar de avós”, bem perto do Castelo de Palmela de outras histórias e combates. E, sabes, não é por estar cansado da guerra travada em suplícios que passaram à história, mas porque o corpo já pagou demais por tantos e tamanhos abusos, receia de um momento para o outro que se zangue em definitivo, adeus até ao meu regresso. Mas tudo foi pouco em vida tão cheia de dissabores que este escritor e editor de espírito rebelde, satânico atrevido, lúcido e inconformado, deve ainda dispor de paz e sossego para arrumar todos os papéis, escrever algumas crónicas, ler os livros dos outros como impenitente leitor que jamais deixou de ser e desse modo acertar as últimas contas no deve e haver de um pessoal livro da vida.
Por último, digo-te ainda, meu caro amigo, que no terreno literário que desbravou, Luiz Pacheco espalhou nesse caminho como tantos outros as pedras necessárias apara se entender e uma outra luz o que foi a literatura e a edição portuguesa dos últimos cinquenta anis deste século:
- Olha, por si e por nós que andámos a seu lado. A favor dos livros e pela qualidade do seu discurso literário ou acção de editor: único, implacável, definidor de outras regras que pouca gente lhe perdoou. E por isso respeito que tudo foi tanto e tão pouco.

Fernando Ribeiro de Mello por Serafim Ferreira


O décimo segundo capítulo de Olhar de Editor, de Serafim Ferreira (na foto) é dedicado a Fernando Ribeiro de Mello:

Capítulo 12

Decido agora falar-te e com inteira justiça, meu caro Luís Silveira, de outro editor Fernando Ribeiro de Mello de seu nome, por guardar dele boas recordações pelo convívio no Porto da nossa adolescência e sempre o rever nos sues dezoito ou dezanove anos, muito empertigado e bem fardado, era então voluntário da Força Aérea, quando passeava garboso à hora de saída das empregadas das lojas de Santa Catarina e de Santo António, mas não sei se isso lhe trouxe algum proveito.
Muito ousado nas suas atitudes e de carácter irreverente que manteve até ao fim da vida, o editor da Afrodite só em Lisboa revelaria em medos dos anos sessenta todo o sentido provocador desse atrevimento que algumas vezes foi motivo de notícia nos jornais: primeiro, em Outubro de sessenta e quatro, desejando avisar a cidade da sua chegada , pôde então promover na Sociedade Nacional de Belas-Artes um recital de poesia que deu escândalo, não pela ausência intencional de vários poetas , nas antes pelo descalabro em que tudo redundou, entre berros e protestos, porque no acto pomposo de saber recitar todos os poemas, Ribeiro de Mello quis avaliar a importância de cada poeta pelo tempo que duravam as palmas da assistência, como se estivesse no Coliseu e toda a gente exigisse fosse repetida alguma outra peça ou o maestro agradecesse as palmas com um número fora do programa.
Não sei, mas o que te lembro, meu amigo, é que um dos poetas mais aplaudidos e, portanto, um dos mais importantes foi precisamente o autor de Caralhamas, esse mesmo, é verdade, que conheceste e de quem ouviste falara na tua passagem pela Covilhã, quando ali estiveste como professor. Imagina como são as coisas, meu caro Silveira. E, sabes outra coisa, apenas depois deste incidente poético, é que Ribeiro de Mello se aventurou como editor e depressa se afirmou pelo sentido de renovação que trouxe nessa actividade seguida com redobrado entusiasmo ou ainda pelo atrevimento der publicar o que parecia impublicável: por exemplo, a cuidada edição da célebre Antologia de Poesia Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia e publicada em mil novecentos e sessenta e cinco. A Antologia foi de imediato retirada de circulação e alguns dos poetas nela incluídos condenados em tribunal por crimes de ofensa à moral pública, e ainda me lembro de um dos textos mais polémicos como o “Coro de Escárnio e lamentação dos Cornudos em Volta de São Pedro”, que o saudoso Mário Viegas declamaria com soberbo sentido irónico num disco a que chamara Humores, e o Luiz Pacheco me ofereceu em encontro casual na rua da Misericórdia, talvez para se sentir mais aliviado do peso dos sacos que trazia consigo nessa tarde.
E, no ano seguinte, sabes, Fernando Ribeiro de Mello reincidiu com a edição da Filosofia na Alcova do divino Marquês da Sade, que também foi prontamente apreendida e levou à condenação de Luiz Pacheco e de Herberto Helder em Tribunal Plenário por manifesto abuso de liberdade de imprensa, um por ter traduzido e outro por ter prefaciado o livro, e agora relembro que esse juiz fascista e pulha se chamava Arelo Manso e assim o pronuncio para que fiques a conhecer o seu nome e os leitores desta minha narrativa não o esqueçam.
Mas o editor da Afrodite de alguma forma alteraria depois o sentido da sua intervenção editorial, voltando-se para os textos dos nossos clássicos, e no marcado apareceram novas edições de Arte de Furtar, Peregrinação e História Trágico-Marítima, sempre acompanhadas por excelentes estudos críticos, a para de uma Antologia do Humor Português, que Virgílio Martinho e Ernesto Sampaio, souberam organizar com todo o rigor e elucidativas notas biobibliográficas dos autores nela representados, ou ainda uma bonita edição dos Textos Malditos de Luiz Pacheco, com capa e ilustrações de Henrique Manuel. E, por falar, de Abril, meu caro, recordo que um dos meus encontros com Ribeiro de Mello após a revolução foi no largo do Camões, quando o vi entrar num carro ainda novinho em folha e, diante desse meu espanto, logo exclamou:
- Olha, foi esta a forma que tive para saudar o vinte e cinco de Abril.
E eu sorri, entrei e aproveitei a boleia até à estação do Rossio. Depois, os anos passaram, os reencontros sempre aconteceram um pouco por toda a parte, sobretudo pelo Chiado ou no Montecarlo que deixou de existir, até ao último encontro que aconteceu nessa manhã, de sol de maio quando, à porta da Brasileira, me disso que em breve iria sujeitar-se a uma delicada operação em Coimbra:
- Sabes, sofro de um aneurisma e vou ser operado dentro de dias. Mas tudo vai correr bem, sei que estou em boas mãos.
Olha, meu caro amigo, o brilho que irradiou nos olhos do Ribeiro de Mello: parecia acreditar com grande confiança que os deuses o não abandonariam e depressa recuperaria o humor e a disposição de espírito de outros tempos. Abanei a cabeça, reafirmei que nada de mal aconteceria e assim nos despedimos com um abraço. Mas só eu sei, meu caro, o que sento quando alguns dias depois, confirmada a nótícia da sua morte, não deixei de evocar como esse encontro no Chiado de muitas conversas foi afinal o derradeiro. Para sempre.

Olhar de Editor, de Serafim Ferreira



Olhar de Editor - Serafim Ferreira
Editora: Escritor
Outubro de 1993

Na contracapa

Este livro é um memorial por alguns dos editores que, dados à sua paixão pela Literatura, nela empenharam, na discrição assumida, os seus bens, a saúde e, quantas vezes, a incompreensão de muitos.
Eles foram (e são) os que deram o ser a tantos escritores, que não fossem estes homens e não teriam visto a suas obras aparecer à luz da ribalta em que brilharam.
Assim, nas páginas sinceras e comovidas desta narrativa, Serafim Ferreira – o escritor de Litoral do Espanto e de Crónica de Damião, o crítico, o tradutor e ele próprio o antigo editor de livros fundamentais – invoca os nomes de Luiz de Montalvor, Delfim Guimarães, Augusto dos Santos Abranches, António Pedro, Figueiredo Magalhães, Agostinho Fernandes, Eduardo salgueiro, Manuel Rodrigues de Oliveira, Américo Fraga Lamares, José Saramago, Leão Penedo, Rogério de Freitas, Viriato Camilo, Luiz Pacheco e Fernando Ribeiro de Mello, a quem valorosamente cabe o título de Editor.

Nota: os próximos dois posts desta página serão preenchidos com os textos que Serafim Ferreira incluiu em Olhar de Editor, dedicados a Fernando Ribeiro de Mello e Luiz Pacheco.

Côro de Escarnho e Lamentação dos Cornudos em volta de S. Pedro



Poema de Luiz Pacheco publicado originalmente na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (e por tal, o autor foi um dos condenados) e posteriormente coligido em Textos Malditos, ambas, edições de Fernando Ribeiro de Mello / Afrodite.

Côro de Escarnho e Lamentação dos Cornudos em volta de S. Pedro

MONÓLOGO DO 1.º CORNUDO

I


Acordei um triste dia
Com uns cornos bem bonitos.
E perguntei à Maria
Por que me pôs os palitos.

II

Jurou por alma da mãe
Com mil tretas de mulher
Que era mentira. Também
Inda me custava a crer...

III

Fiquei de olho espevitado
Que o calado é o melhor
E para não re-ser enganado,
Redobrei gozos de amor.

IV

Tais canseiras dei ao físico,
Tal ardor pus nos abraços
Que caí morto de tísico
Com o sexo em pedaços!

V

Esperava por isso a magana?
Já previa o que se deu?...
Do além vi-a na cama
Com um tipo pior do que eu!

VI

Vi-o dar ao rabo a valer
Fornicando a preceito...
Sabia daquele mister
Que puxa muito do peito.

VII

Foi a hora de me eu rir
Que a vingança tem seus quês:
«O mais certo é práqui vir,
Inda antes que passe um mês».

VIII

Arranjei-lhe um bom lugar
Na pensão de Mestre Pedro
(Onde todos vão parar
Embora com muito medo...)

IX

Passava duma semana
O meu dito estava escrito
Vítima daquela magana
Pobre tísico, tadito!

DUETO DOS 2 CORNUDOS

X

Agora já somos dois
A espreitar de cá de cima
Calados como dois bois
Vendo o que faz a ladina

XI

Meteu na cama mais gente
Um, dois, três... logo a seguir!
Não há piça que a contente
È tudo que tiver de vir!

S. PEDRO, INDIGNADO, PRAGUEJA.

XII

- É de mais!... Arre, diabo!
- Berra S. Pedro, sandeu. –
E mortos por dar ao rabo
Lá vêm eles pró Céu!

CORO, PIANÍSSIMO, LIRISMO
NAS VOZES

XIII

Que morre como um anjinho
Quem morre por muito amar!

CORO, AGORA NARRATIVO
OU EXPLICATIVO.

Já formemos um ranchinho
De cá de cima, a espreitar.

XIV

Passam meses, passa tempo
E a bela não se consola...
Já semos um regimento
Como esses que vão prá Ingola!

(ÁPARTE DO AUTOR DAS COPLAS:
«COITADINHOS!»)

XV

Fazemos apostas lindas
Sempre que vem cara nova.
Cálculos, medidas infindas
Como ela terá a cova.

XVI

Há quem diga que por si
Já não lhe topou o fundo...
Outros juram que era assi
Do tamanho... deste Mundo!

XVII

- Parecia uma piscina! –
Diz um do lado, espantado.
- Nunca vi uma menina
Num estado tão desgraçado!

APARTE DO AUTOR, ANTIGO MILI-
TANTE DAS ESQUERDAS (BAIXAS).

XVIII

(Um estado tão desgraçado?!...
Pareceu-me ouvir o Povo
Chorando seu triste fado
nas garras do Estado Novo!)

XIX

O último que chegou cá
Morreu que nem um patego:
Afogado, ieramá,
Nos abismos daquele pego.

O CORO DOS CORNUDOS, ACOMPA-
NHADO POR S. PEDRO EM SURDINA,
ENTOA A MORALIDADE, APÓS TER
LIMPADO AS ÚLTIMAS LAGRIMETAS
E SUSPIRANDO COMO SÓ OS CORNU-
DOS SABEM.

XX

Mulher não queiras sabida
Nem com vício desusado,
Que podes perder a vida
Na estafa de dar ao rabo.

XXI

Escolhe donzela discreta
Com os três no seu lugar.
Examina-lhe a greta,
Não te vá ela enganar...

XXII

E depois de veres o bicho
E as maneiras que tem
A funcionar a capricho,
Já sabes se te convém.

XXIII

Mulher calma, é estimá-la
Como a santa no altar.
Cabra douda, é rifá-la...
- Que não venhas cá parar.

XXIV

Este conselho te dão,
E não te levam dinheiro...
Os cornudos que aqui estão
Com S. Pedro hospitaleiro.

XXV

Invejosos quase todos
Dos conos que o mundo guarda

FAZEM MAIS UM BOCADO DE LA-
MENTAÇÃO. NOTA DO AUTOR: QUASE,
PORQUE ENTRETANTO ALGUNS BRIN-
CAVAM UNS COM OS OUTROS. RABO-
LICES!

Mas se fornicas a rodos
Tua vida aqui não tarda!

RECOMEÇA A MORALIDADE, ESTILO
ESTÃO VERDES, NÃO PRESTAM.
ALGUNS BÊBADOS, CORNUDOS DES-
PEITADOS OU AMARGURADOS. VOZES
PASTOSAS. DEVE LER-SE: VIIINHO...
VÉLHIIINHO...

XXVI

Melhor que a mulher é o vinho
Que faz esquecer a mulher...
Que faz dum amor já velhinho
Ressurgir novo prazer.

FINALE, MUITO CATÓLICO.

XXVII

Assim termina o lamento
Pois recordar é sofrer.
Ama e fode. É bom sustento!
E por nós reza um pater.


Luiz Pacheco
Num dia em que se achou
Mais pachorrento.