Friday, September 14, 2007

Ana Hatherly



Ana Hatherly foi a tradutora de A Vénus de Kazabaika, de Leopold von Sacher Masoch, Edições Afrodite, Lisboa, 1966. Nas duas edições (primeira,segunda) da Antologia do Conto Fantástico Português está incluído uma ficção sua, intitulada, No Restaurante. A escritora fez parte de um leque de colaboradores e amigos de Fernando Ribeiro de Mello, ao ponto de este lhe confiar livros que as autoridades do Estado Novo proibiam e procuravam. A Vénus de Kazabaika teve uma segunda edição, pela Relógio D´Água com a mesma tradução, apresentando um prefácio, onde Ana Hatherly conta um pouco da atribulada história do editor Fernando Ribeiro de Mello. Nos próximos posts, apresentaremos a edição da Vénus das Edições Afrodite e o referido prefácio.


Ana Hatherly poeta, tradutora, ensaísta e professora universitária, nasceu no Porto em 1929. É licenciada pela Universidade de Lisboa e Doutorada em Literaturas Hispânicas pela Universidade de Berkeley (U.S.A.). Estudou música e arte cinematográfica. Iniciou a sua carreira literária em 1958 com o livro de poemas Um Ritmo Perdido. Foi uma das principais colaboradoras do grupo de Poesia experimental, nos anos 60 e 70. A sua poesia reúne fortes tendências barroquizantes e visuais. Algumas das suas obras fundem a expressão poética com a intervenção plástica. É o caso, por exemplo, de Mapas da Imaginação e da Memória (1973), bem como de várias exposições que incluem desenho, pintura e colagem, realizadas em galerias e centros de exposições. O seu trabalho está representado nas mais importantes Antologias e Histórias da Literatura Contemporânea de Portugal, Brasil, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Dinamarca, Suécia, Holanda, e República Checa. Tisanas é a sua obra mais traduzida.


Biografia e imagem de Um Buraco na Sombra

Monday, September 10, 2007

Luiz Pacheco na K


Luiz Pacheco na revista K, n.º 22 - Julho de 1992, entrevistado por Carlos Quevedo e Rui Zink, referindo-se Fernando Ribeiro de Mello e aos processos que apanhou por conta das suas aventuras nas Edições Afrodite. Agradecimento ao Funcionário Cansado, de onde retirámos as partes da entrevista e a imagem.


K - O que é um libertino?

LP- O libertino para mim, é mais fácil de definir pela negativa. A libertinagem não é o medo, não é a devassidão, não é a tristeza. É o ateu progressista. É preciso não esquecer que o Marquês de Sade, depois de ter saído da Bastilha, pertenceu a um comité do povo, e nesse comité do povo ele fez uma acção humana, que foi salvar a sogra que o tinha perseguido durante 40 anos ou coisa que o valha. Ele não mandou cortar a cabeça da sogra, mas a sogra merecia.

K - Porque é que o libertino não é um devasso?

LP - O devasso é o gajo que não tem regras, é o gajo que vai a todas, é um bocadinho o Ribeiro de Mello, benza-o Deus, que já está no outro mundo. A Natália Correia é uma devassa, vocês ponham isso que ela fica toda zangada, mas ela é uma devassa. Por exemplo, ela foi à estreia, não, ela não foi à estreia mas foi lá ver a Comunidade e ela diz: «Afinal de contas o Luiz Pacheco é um pater famílias, a libertina sou eu». Eu, se estivesse lá dizia: «Ó sua maluca, você não é uma libertina, você é uma devassa», é uma estragadona que não respeita pai nem mãe, vai meter-se com o irmão de uma mulher minha, com um tio deste, quando eu estava preso no Limoeiro. Ela meteu-se com uma mulher minha. Quer dizer, abusou da situação de eu estar preso para aproveitar uma rapariga que estava lá em casa por caridade. E depois, quando eu saí, claro que fiz uma guerra, ataquei uma mulher dela, à má fila, para ela saber o que é bom. Portanto vocês têm uma noção de como é o libertino, eu tenho esta que é feita por negativas. O libertino faz da sua vida um espectáculo; ora este texto é um espectáculo, é a tal noção do cinema verité, quer dizer, vai mostrando o libertino a fazer aquelas maluqueiras todas, com o vinho verde, que é um vinho que não dá muita perturbação. Vai mostrando os fracassos, vai-se confessando, mas também há um certo gozo masoquista disso. O que não é tristeza.

(...)

K -Nunca saiu do país?

LP -Estive em Itália só uma vez, ia fugir para o Egipto. Em relação a esses tipos, o Cardoso Pires, o Saramago, o Salazar Sampaio, eu sou um atraso de vida, porque sou um gajo de 1800 e tal 1900. Olha, nunca andei de avião. Estive em Roma e fui num comboio e vim noutro. Eu queria ver se ia para o Egipto para fugir a uns processos, porque eu tive mais processos-crime. Cheguei a ter cinco processos ao mesmo tempo: o processo do Marquês de Sade, o processo da Natália Correia com a Antologia, o processo da mãe deste, da menor, o processo da dona de casa…

O Vinho e a Lira – recensão crítica de Liberto Cruz



Texto publicado no Jornal de Letras e Artes de 25 de Maio de 1966:

Um livro de poesia!

Malheur au poete si son vers fait la petite bouche! Victor Hugo

Fernando Ribeiro de Mello, jovem editor na idade e no ofício poderá vir a preencher uma lacuna no plano editorial português. Depois de alguns arrojados lançamentos eis que nos oferece agora uma colecção de poesia – Sagir – cujo primeiro número é constituído por um livro de Natália Correia: O Vinho e a Lira. Poeta e ensaísta, autora de Comunicação é uma das vozes mais firmes da poesia portuguesa contemporânea. O presente volume é mais uma achega para a importância cada vez mais nítida que a poesia feminina vem tendo entre nós.
Há tempos relendo o celebérrimo Préface de Cromuell, de Victor Hugo, fixei a seguinte frase: Malheur au poete si son vers fait la petite bouche!
Mal sabia eu que quase um século depois estas palavras de Mestre Hugo se poderiam aplicar inteiramente a um livro de Natália Correia, isto é, que um poeta dos nossos dias viria uma vez mais dar razão ao festejado autor de La Légende des Siécles. Na verdade todos os poemas de O Vinho e a Lira parecem querer fugir a essa desgraça onde o verso fait la petit bouch! E diga-se abertamente que o conseguem e lembram a cada momento. Cada poema, cada verso sabe de cor esse aviso de Victor Hugo e mercê duma força intrínseca que os anima e projecta, ganham uma intensidade dramática, uma coragem impressionante onde o amor e a morte, a vida e o sonho se entrechocam e saltam desesperadamente, plenos de avidez e delírio. É então altura de a lira cantar com paixão e raiva com verdade e fúria embriagado-se lucidamente para que o seu canto tenha tanto de ousado como de fantástico, e tanto de real como de inventado.
Apontada muitas vezes como surrealista ela própria teve oportunidade, não há muito tempo, de escrever as seguintes palavras: «Frequentemente arrumada pela crítica no cacifo surrealista, tem a autora a esclarecer que, se semelhante arrumo quadra à comodidade dos nossos fazedores de génios, de forma alguma define a sua poesia.»
Com efeito o volume agora publicado por Natália Correia leva-nos a concluir que estamos perante um poeta para quem a realidade assume uma importância que até aqui passava despercebida aos menos atentos. Não só o poema acima transcrito como outros de O Vinho e a Lira

Salvem-se ao menos as unhas
a máquina de registar
a sangue o número da besta
porque eu sou aquele que virá
com sete estrelas na dextra
mostram-nos que a autora está poeticamente empenhada numa realidade que é no fim de contas o cosmos e a justificação do próprio poeta. Atento e integrado num real, que procura desvendar para uma melhor actuação e deslumbramento da poesia, o poeta não hesita em proclamar:(Pág. 100)

Lúcido, desiludido e crente, desesperado e exacto, ei-lo que se levanta para dizer com a tranquilidade de quem habita a vida e a entende:

Todavia é o fim
o suicídio de um avião
todos os dias acontece
o que só prova que o romantismo
felizmente prevalece
(Pág. 98)

Não se pense no entanto que o realismo poético de Natália a limita ou inibe se seguir outros caminhos. Livre, poeticamente livre, encaminha constantemente para uma recriação onde a palavra e a imagem têm uma função secreta e inefável a desempenhar. É certo que este livro perdeu (infelizmente quanto a mim) aquele tom misterioso repleto de feitiço e encantamento com que Natália Correia embebia os seus versos. Mas ganhou por outro lado uma humanidade, uma paixão pelas gentes e pelas coisas que também não pode deixar de me impressionar. E o quer me agrada sobremaneira é ver a distância, a coragem e o entusiasmo com que sabe fugir ao imediato, ao banal, ao quotidiano, no pior sentido da palavra. Acima de tudo poeta e artista da palavra e da forma (genuinamente portuguesa no modo como utiliza a redondilha mais europeia pela liberdade que lhe imprime) Natália Correia mostra-nos a cada passo ser a realidade um poderoso e extraordinário colaborador da magia. Para a autora a realidade não é um fim único mas um meio capaz de ajudar a expressar a poesia que a invade.
Um caminho onde Natália Correia atinge uma altura que neste momento não encontro na actual poesia portuguesa feminina é nos poemas de amor. Abandonando ouropéis e eufemismos, atitudes passivamente líricas e resignadas mergulha numa aragem renovada de liberdade e erotismo, de feminilidade e ânsia, de posse e frustração.
Actuando decididamente ao contrário do que é comum na poesia feminina (malheur au poete si son vers fait la petite bouche!) os poemas de amor surgem-nos contudo carregados de paixão, repassados de uma frenética e corajosa sinceridade onde a mulher louva e canta a «arte de ser amada». E fá-lo num tom maior, activo e actuante, banindo a típica e corrente imagem do amado que se contempla e pelo qual se suspira, para se lançar num plano real e imaginado onde o objecto e a ideia se enlaçam e exaltam.
Servindo-se constantemente do vocábulo concreto, objectivo, directo, chamando às coisas os nomes que elas têm, a sua linguagem atinge todavia um clima de irrealidade, um tonus intemporal, mercê da beleza e da técnica com que sabe manejar e ajustar as palavras. Jamais condescendendo com o malabarismo susceptível de provocar um efeito simpático, o rodriguinho capaz de entusiasmar capelinhas, ei-la que se volta para a forma das origens da nossa poesia para melhor poder falar no nosso tempo – e desassombradamente – duma temática tão antiga como actual, tão moderna como renovada e constante.
Atente-se ainda no ritmo, no «crescendo» do poema, nas pausas, na parente dispersão do volume, no significante e no significado de O Vinho e a Lira e concluiremos que estamos perante o mais belo livro de poesia publicado nesta primeira metade de 1966.
Na última crónica publicada neste jornal apelámos para a Editorial Presença para que conferisse à sua colecção de poesia um melhor nível nos poetas escolhidos. Hoje só nos resta pedir a Fernando Ribeiro de Mello que saiba (e possa manter) a qualidade da sua colecção Sagir tão fulgurantemente iniciada com o livro O Vinho e a Lira de Natália Correia.
Publicando o seu melhor livro de poesia, pela maturidade do Verbo, a expressividade dos versos, a beleza e a ousadia da forma e da temática – sempre tão indisciplinadamente certos – Natália Correia obtêm na poesia portuguesa, e nomeadamente na feminina, um lugar de relevo cuja modernidade tem o sabor clássico das cosas antigas e a loucura inquietante das vindouras.

Saturday, September 08, 2007

Promoção de O Vinho e a Lira

Imagens de promoção de O Vinho e a Lira, de Natália Correia:


No Jornal de Letras e Artes de 27 de Abril de 1966


No Jornal de Letras e Artes de 25 de Maio de 1966

(clique nas imagens para aumentar)

Outra recensão crítica à Antologia do Conto Fantástico Português



Recensão Crítica à Antologia do Conto Fantástico Português publicada no Jornal de Letras e Artes n.º 258, de Março de 1969.

«ANTOLOGIA DO CONTO FANTÁSTICO PORTUGUÊS», Edição de Fernando Ribeiro de Mello, Lisboa, 1967 – Abrangendo um período que vai de Alexandre Herculano ao escritor Almeida Faria, esta força de selecção de algo que em definitivo não se afirma é operação que fica por esclarecer. Nota-se a falta de um prefácio que fornecesse ao público ledor o móbil da intentona. A nota do editor, apenas avisando que foram escolhidos textos que «mergulham numa atmosfera de estranheza e em que se manifesta a irrupção de elementos insólitos ou inexplicáveis» não ficaria mal num prolegómeno ao aparecimento da Virgem Maria (que efectivamente surge, a págs. 347 do livro) e de outras estranhezas de recuperação teológica. Aliás, a própria noção de fantástico é uma categoria degradada na ficção contemporânea, e só o arrepio de medo com que vemos sucederem-se, neste volume, um Ferreira Castro a um Mário de Sá-Carneiro e um Carlos Wallestein a um Eça de Queiroz tem, no meio disto tudo, algo de fantéstico. A partir de meio-volume, vasta quantidade de autores vivos reconhece-se pela singularidade de ser constituída por nomes que nunca assinaram nada de fantástico, ou o fizeram pela primeira vez. Com vistas a esta antologia? Caso afirmativo, devemos considerá-la como um caderno de vocações inéditas, como uma nova espécie de revista literária, restando-nos nesse caso aguardar os próximos volumes.

A. L.

Entrevista a Herberto Helder


Entrevista a Herberto Helder(na foto) por Fernando Ribeiro de Mello, publicada do Jornal de Letras e Artes n.º 139, de 17 de Maio de 1964.

«Os cinco livros que até hoje publiquei pouco significam agora para mim!»
- Diz-nos desassombradamente Herberto Helder

Herberto Helder, cujo último livro, «Electronicolírica», veio levantar sérios problemas em volta do conceito que a sua poética parecia anunciar acaba de publicar em conjunto com António Aragão e vários o colaboradores o caderno «Poesia Experimental» que vem confirmar a viragem operada na sua obra.

Fernando Ribeiro de Mello/ Jornal de Letras e Artes – Como considera criticamente a evolução da sua produção poética, desde «O Amor em Visita» ao recentemente publicado «Electronicolírica»?
Herberto Helder –
Em certo sentido (que também prezo), não houve evolução. Esse sentido é o de fidelidade às bases da minha experiência – a descoberta do modo – que, fundamentalmente, se cumpriu na infância. A experiência exterior poderá ser considerada simples desenvolvimento ou enriquecimento «em linguagem». A minha poesia processou sempre, como é evidente, exercer-se sobre essa massa central e viva. Mas a experiência humana é apenas ponto de partida, núcleo sólido e permanente onde assenta a experiência posterior da criação. Considero a criação o encaminhamento, até às consequências extremas, de uma experiência em si mesma não organizada. A descoberta do mundo não possui, por ela própria, finalidade ou coerência, nem constitui a salvação desse mundo. Desde que seja possível criar um corpo orgânico em que a experiência, devidamente articulada, se baste, surge uma harmonia entre o sujeito e a sua experiência, quero dizer, o sujeito participa do cosmos. Este esforço da superação do caos exprime-se pela busca de uma linguagem. È aliás na linguagem que a experiência se vai tornando real. Se nela não há, em sentido rigoroso, experiência do mundo. A esta conclusão vem chegando uma moderna filosofia da arte. A formação da linguagem é um paciente, extenso, doloroso e, muitas vezes, desesperante caminho. O erro aparece como uma constante, mas existe a possibilidade de ser sempre menor. Entre um grau máximo e um grau mínimo de erro, situa-se a evolução. Progresso de linguagem, de adequação às finalidades, superação da experiência, purificação do tema – eis onde se pode situar o sentido da evolução. Evolui evoluirci. Suponho que, entre a minha produção até ao volume «Lugar» e a quer me encontro realizando, há um salto considerável. O livro «Electronicolírica» é apenas o início do rompimento com certos princípios que orientavam a procura do estilo. Acho-me no ponto em que não hesito distanciar-me de tudo o que antes escrevi. Mesmo de «Electronicolírica» , aliás, composto há já um ano. Afasto-me, até, da minha colaboração no primeiro número de «Poesia Experimental» que, escrita antes, se situa contudo num momento mais avançado de evolução. Os cinco livros que até hoje publiquei pouco significam agora para mim. O pouco significarem garante-me completa liberdade e isenção, em ordem a uma nova linguagem. Nesses volumes não se exprime propriamente uma evolução, pelo facto de todos eles assentarem em dois preconceitos, a saber: 1) A consideração exclusiva de processos literários para a realização do espaço poético; 2) a preocupação de conseguir uma linguagem comunicativa. Presumo que um poeta dispõe de recursos muito mais amplos do que os meramente verbais e que, utilizando-os mesmo em exclusivo, eles devem tender à organização não apenas literária, ou gramatical, ou rítmica. Compreendo que se possam fazer poemas recorrendo, por exemplo, à expressão matemática, ao grafismo, à técnica comercial e industrial, às máquinas, à música, ou a qualquer outra fonte e tipo de sintaxe. Por outro lado, imagino que as preocupações do poeta se devem libertar da linguagem organizada para o diálogo. Max Bense afirma algo de semelhante, ao acentuar que «no conceito convencional de literatura, põe-se a ênfase na função comunicativa-social dela, enquanto que, no conceito progressivo, se insiste na sua função experimentativa-intelectual». Interessa-me, portanto, chegado que sou à convicção de me haver limitado, nos livros anteriores, a mover-me em círculo sobre uma linguagem esgotada – interessa-me digo, muito menos executar, uma gramática literária, destinada ao diálogo, do que perfazer um organismo internamente coerente e bastante. A comunicação será consequente, se for. De qualquer modo, bani a ideia, do diálogo, no meu estilo. Mas sinto-me ligado aos escritos antigos como alguém se pode sentir ligado a um paciente e doloroso erro...
FRM/JLA – Como explica a publicação do seu último livro, poesia de carácter experimental, após e em face da obra anterior que conquistara inegável prestígio?
HH – A resposta a esta pergunta está incluída na primeira. Resta-me acrescentar que o prestígio que possa ter alcançado (prestígio equivoco no qual se integra a malquerença de alguma gente, que aceito com satisfação) não poderia constituir uma poltrona. O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia.
FRM/JLA – Que pensa da atitude da crítica relativamente a este livro?
HH –
A crítica? Bem vê: nas circunstâncias em que me encontro, a crítica não me poderia ajudar. Ela de resto nunca ajuda um autor. Tende afazer de mediadora entre uma linguagem e um entendimento. Ajudará o leitor. Visto que bani das minha preocupações a ideia de comunicação, não considero a intervenção desse primeiro decifrador, do mediador. Porque não estou interessado em que o leitor adira...
Poucas apreciações críticas foram feitas ao livro, até porque só o enviei a três ou quatro críticos, cada um deles representando certo núcleo de opinião. Simples curiosidade da minha parte... A referência que lhe concedeu Álvaro Salema exprime, mais ou menos, a opinião dos neo-realistas a meu respeito e inscrevo-a na categoria dos meus pequenos divertimentos privados. A de João Gaspar Simões, mais esclarecida e esforçada, carece de informação. Não é possível criticar-se um livro de poesia experimental com os instrumentos aplicáveis à poesia convencional. Em todo o caso, Gaspar Simões é um homem atento, e a sua formação de base parece-me menos estreita que a da maioria dos críticos portugueses. Lamento que o seu conceito de poesia se vincule demasiado a alguns postulados da geração presencista.

FRM/JLA – Diga-nos se o seu livro de contos «Os Passos em Volta» constitui uma experiência isolada ou representa uma continuação da sua obra restante.
HH –
Esse livro pertence ao mesmo sistema de propostas e soluções dos outros. Inscrevê-lo na designação de contos, ou chamar aos meus outros livros conjuntos de poemas, significa apenas ausência de superfície às categorias estabelecidas. Não me parece necessário referir a crise das classificações literárias. Caminha-se, sabemo-lo todos, para uma visão total da obra literária que se não podem adoptar distinções afinal nunca rigorosas, senão de um ponto de vista didáctico e, assim mesmo, somente em determinado grau de didactismo, «Os Passos em Volta» são a minha primeira tentativa para superar a dictomia prosa-poesia. Marcam também o meu interesse, no momento de referir algumas algumas experiências de facto, em que a circunstância desempenhava papel preponderante. Achei então que o poema, como eu o vinha praticando, não possuía a elasticidade, o ritmo, o clima verbal, capazes de abrange, adequadamente o tecido temático e circunstancial que eu pretendia explorar. Aquele livro permitiu-me tal experiência, tendo sido ele, afinal, um passo decisivo para a abolição dos preconceitos que vinham limitando o meu trabalho.
FRM/JLA – Sobre os cadernos «Poesia Experimental» que se lhe oferece dizer?
HH – «Poesia Experimental», cadernos cujos propósitos são parcialmente expostos no primeiro número e que mais cabalmente irão sendo nos seguintes, constitui o único esforço sistemático e de conjunto para a renovação da poesia portuguesa. Estes cadernos provarão também que existe na nossa poesia uma tradição que nunca foi sequer, de passagem, indicada. Quanto ao corpo de colaboradores, que espero ver presentes no diversos números que se projecta publicar, têm vindo todos eles, privada ou publicamente, tentando alguns meios novos da expressão poética. Salette Tavares ofereceu-nos agora algo que considero extremamente importante, tendo conseguido uma desenvoltura rara na utilização de uma gramática com pouca tradição onde se apoiar. António Aragão propõe um extenso poema-narração, bastante ambicioso,, justo em muitas das suas partes. Há nele uma multiplicidade de experiências que conduzirão a lugares diferentes do experimentalismo. E. M. de Melo e Castro consegue o melhor dos textos que publicou até hoje e onde se purifica a tendência «concretizante» dos seus processos. António Ramos Rosa aparece com textos semantemáticos de grande rigor que marcam corajoso passo em frente, passo aliás adivinhável já em «Ocupação do Espaço». António Barahona da Fonseca liberta-se dos seus vínculos surrealistas e promete o necessário salto mortal, para que, interiormente, se tem vindo a preparar. Quanto a mim, vou um pouco mais longe na exploração do principio combinatório inspirado nas calculadoras electrónicas, considerando no entanto tais experiências ainda pouco ousadas para o que pretendo. Espero conseguir um pouco mais.
Não existe qualquer uniformidade nas experiências em curso entre os colaboradores de «Poesia Experimental». É visível, imediatamente, que duas grandes tendências se desenvolvem no sei da revista. Uma a que poderei chamar «concretizante», que se apoia, digamos, numa concepção materialista da linguagem, procurando a coisificação da palavra. Outra «abstractizante», em que a ambiguidade e o indefinido, provenientes de uma inclinação barroca do espírito, se inserem no processo verbal, criando espaços míticos sobre os quais se pode dizer debruçar-se um sentido do maravilhoso. Esta tentativa de caracterização é de facto rudimentar e assinala apenas diferenças profundas imediatamente observáveis.
FRM/JLA – Quanto a si, quais os movimentos ou tendências da poesia portuguesa actual que lhe parecem importantes, não só do ponto de vista de renovação formal, estética como também sob o ângulo conceptual e humano?
HH –
O único movimento poético que me parece moderno é o Experimentalismo. E estou a referir-me tanto ao nosso país como à poesia em geral. Os meus interesses estão de tal modo virados para ela que me é quase impossível dar atenção à poesia convencional, por mais notável que seja, dentro dos seus recursos e propósitos.
Quanto ás expressões «formal», «conceptual», «estético» e «humano», nas acepções utilizadas na sua pergunta, nada tenho a dizer. Representam conceitos não integráveis, desse modo, no meu processo de pensamento. Em poesia, formal, conceptual, estético e humano significam, conjuntamente, «linguagem». E poesia, como diria certo crítico norte-americano, é linguagem. Isolar o implícito, explicitando-o, servirá apenas para estabelecer um sistema insolúvel de situações.