Wednesday, July 25, 2007

Algumas ilustrações de Eduardo Batarda nas Histórias Com Juízo



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Histórias Com Juízo - um exemplar com dedicatória do autor

Histórias Com Juízo, de Mário Castrim

(edição de 1969)



N.º 5 da Colecção infantil Cabra-Cega
Capa e desenhos de Eduardo Batarda

Algumas ilustrações de Henrique Manuel na Poesia Portuguesa Erótica e Satírica - Séc. XVIII - XIX

Brilhantíssimo Fernando Ribeiro de Mello


Da Biografia Literária de Alexandre O´Neill, escrita por Maria Antónia Oliveira e recentemente publicada pela Dom Quixote, retirámos este parágrafo:

Bebia fora das refeições, por exemplo, quando tinha de enfrentar as câmaras de televisão. Entre Abril e Agosto de 1980, O´Neill fez uma última incursão continuada no meio televisivo. Raul Solnado convidou-o para integrar o júri no Concurso A Prata da Casa da RTP. Acompanhando-o na avaliação das provas dos concorrentes estavam ainda Beatriz Costa, Maria Elisa Domingues, Tomás Branquinho da Fonseca e Fernando Ribeiro de Mello. «Eu convidei-o para fazer parte do júri d´A Prata da Casa – também não esteve bem, como já tinha acontecido no Zip-Zip. Não se sentia à vontade em televisão. Ainda por cima um dos jurados, o editor Fernando Ribeiro de Mello… foi brilhantíssimo e esmagou toda a coisa, provocou uma sombra. Estávamos à espera que o O´Neill tivesse uns repentes. Ele também estava muito em baixo. Esteve em minha casa, teve uma conversa comigo e disse-me que não se sentia muito bem. E eu perguntei-lhe “Mas ó Alexandre, queres mesmo fazer o programa?...” ”Não, não. Agrada-me muito.” Mas senti-o em baixo. N´A Prata da Casa bebia antes do programa, com medo.» (RS)

& etc


Fernando Ribeiro de Mello foi um dos fundadores da & etc, conforme declarou Vítor Silva Tavares em entrevista ao Público. Recentemente, o Funcionário Cansado publicou uma excelente série de quatro posts sobre o início de actividade da editora. Recomendamos a sua leitura:

1 - & etc

2 - & etc (o magazine)

3 - & etc n.º 1

4 - & etc n.º 2

Recomenda-se também uma voltinha pelo Centro de Artes, onde se pode consultar o catálogo, visualizando as capas, podendo ainda ler algumas histórias escritas por Vítor Silva Tavares.

Imagem do Funcionário Cansado

Vítor Silva Tavares


Colaborador nas Edições Afrodite

Vítor Silva Tavares teve algumas colaborações com Fernando Ribeiro de Mello nas Edições Afrodite. O prefácio da Antologia do Conto Abominável foi por ele escrito, tal como um dos comentários à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Em 1976, foi o revisor literário de A Metafísica do Sexo, de Julios Evola. Surpresa, é uma ficção sua, intitulada Não, Não foi de Herói, que está incluída na primeira edição da Antologia do Conto Fantástico Português.

Pequeno excerto de uma entrevista a Vítor Silva Tavares, no Público, em 16 de Julho de 2007.
Público/Alexandra Lucas Coelho - E duas ou três aventuras poéticas que sente que são a sua família?


Vítor Silva Tavares - Desde o meu antigo encantamento pela Ulisseia, mas também pela velha editora Inquérito, do Salgueiro. Foi-me dito pelo Luiz Pacheco que o velho Eduardo Salgueiro conseguiu aguentar a editorial Inquérito 50 anos na falência. Eu ainda só vou fazer 35. Quem me dera poder chegar a esse número. Há 50 anos que estamos falidos, mas de porta aberta. Mais próximos de nós, um grande editor, maluco, nem por isso muito culto, mas com um instinto, um faro, e também um gosto de fazer a toda a prova, Fernando Ribeiro de Mello, das Edições Afrodite, o tal que queria fazer a revolução sexual em Portugal. Fez a dele, já não está mal. Meu grande amigo e sócio no arranque do etc. Tive muita pena de ter ido abaixo o projecto da Hiena. Arrancou muito bem, aí estava um homem amante do livro [Rui Martiniano]. A Hiena começou com...

P/ALC - Uma tradução sua, “O Sorriso aos Pés da Escada”.

VST - O [Henry] Miller, exactamente. E quando me vieram dizer até fiquei zangado. Porquê? Não foi por terem editado, nunca faço reedições, muito menos isso, uma coisa que tinha feito na Ulisseia há não sei quantos anos. Foi por não me ter dito nada. Então alguma vez eu ia levantar qualquer problema em o homem usar o prefácio ou a tradução ou coisa assim. Então de todo em todo não me estava a conhecer. O trabalho aqui quem quiser tira, o “copyright” é dos autores. O etc não tem “copyright”. É sabido que em “n” casos sou um editor pirata. Sim senhor, corro esse risco. Também lhe digo que essas piratarias nunca foram feitas sobre autores vivos, ponto um. Ponto dois, nunca eu retirei delas um tostão de lucros. Ponto três, parte das piratarias aqui feitas são de pequenos textos, laterais à obra dos autores, com tão pequena dimensão, que até os vendedores do “copyright” não vendem por não terem interesse comercial nisso, o que quer dizer que se deixam de publicar uma quantidade de coisas por causa do “copyright”. Então, eu borro-me para o “copyright”, podendo apanhar uma denúncia, sim senhor.

P/ALC - Para passar os livros. São ainda piratarias poéticas.

VST - Então tive pena, pena, de projectos como a Hiena, ou quando o Fenda foi abaixo – felizmente o Vasco tem sabido pô-la em pé. De certo modo a Fenda também nasceu por causa da etc. Ou como a Contexto, que foi abaixo.

Introdução à entrevista feita por Alexandra Lucas Coelho, que para aqui serve de Biografia:
É lisboeta “pardal”, de palmilhar a cidade a pé. Foi miúdo descalço na Madragoa, uma pobreza de se pôr o relógio no prego para haver sopa de hortaliça numa casa com 13 pessoas. É nessa casa que continua a viver, e o relógio ainda lá está. Entre o prego e 2007, as aventuras dão para uma conversa que não acaba, a que ele vai tendo com os próximos, sem pensar em escrever memórias. A sua escola de jornalismo, muito antes do “Diário de Lisboa”, é a do “Intransigente”, de Benguela, onde também foi inspector de cartas de condução sem saber conduzir e mudou os nomes a todas as ruas da cidade numa noite de subversão, que lhe valeu ter um agente da PIDE à perna, de seu nome Delgado. Partiu de Angola em risco de ser preso, deixando um 45 rotações de Mahalia Jackson a um contratado do interior que o levou para onde nunca mais terá sido ouvido. De volta a Lisboa, distribuiu colaborações pelos jornais enquanto, ateu dos quatro costados, pintava Cristos que um “manager” vendia a conventos. Não sabe por onde andará essa extensa obra pictórica. Depois convidaram-no a dirigir a editora Ulisseia, onde começou a publicar surrealistas portugueses, “nouveau roman” francês e obra de muita indignação para a censura. Os livros eram apreendidos, mas aparentemente a Ulisseia era mesmo para dar prejuízo ao dono, a Abel Pereira da Fonseca.Gosta de coisas tão antigas como letras de tipografia e histórias a circular pela boca. De fazer coisas porque apetece, e porque tem de ser, e porque é assim.
A porta aberta é para entrar e para sair, o importante é que esteja aberta. Na & etc não há lucros e há livros quando houver. Tem havido regularmente, e cá estão eles a toda a volta deste subterrâneo com pátio de azulejo antigo e escadinha de ferro, ali onde o Bairro Alto cola com a Bica, muito lisboeta. Tudo já aconteceu aqui, até quase um parto. Não há computadores e a secretária é a mesma que o senhorio ofereceu no dia em que o subterrâneo foi alugado. Vinha a calhar para este título, que começou por estar no primeiro livro de Vítor Silva Tavares publicado em Angola, “Hot & etc”, depois passou a ser um magazine do “Jornal do Fundão”, uma revista e enfim uma editora. Por ter começado como magazine é que Vítor Silva Tavares lhe chama sempre “o etc”, no masculino. Hoje, centenas de livros diferentes, que parecem quadrados, e todos juntos são uma bela, longa, aventura. Horas de conversa, em que ainda antes da primeira pergunta, a jornalista abandonou o guião. A gravação começa com Vítor Silva Tavares a contar como começou a & etc. Partimos da mais rigorosa e total independência, só tendo em cima de nós a vigilância censória, o que a censura cortava. Mas nós não cortávamos. Não havia censura interna, nenhuma. E não era, como agora se diz, “vamos ter um projecto”, não senhora. Entrámos a fazer o etc exactamente como uma aventura poética, interligando desde logo a intervenção artística, cultural, com as nossas próprias vidas. Viver poeticamente através de uma folheca, ou de livrinhos, mas viver a nossa própria vidinha. Talvez isso nos ajudasse a dar algum sentido, alguma alegria a um país em absoluto pardacento que não apetecia. Hoje não sei se apetece muito, na altura não apetecia nada. E, portanto, dúzia e meia de malucos atirámo-nos para isto. E já colaboraram no etc, desde que ele nasceu, largas centenas de escritores, tradutores, pintores, ilustradores, que jamais tiraram daqui um cêntimo. A editora é totalmente independente. Nunca pediu nem à Secretaria de Estado da Cultura, nem às fundações, nada. Vive exclusivamente ou dos livrinhos que fazemos e pomos nas livrarias, e as tiragens são muito pequenas.

3 ilustrações no Ulisses de Maria Alberta Menéres




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Ulisses, de Maria Alberta Menéres

(Edição de 1972)


N.º 10 da Colecção infantil Cabra-Cega
Capa, contra-capa e ilustrações de Diogo Vieira e Nuno Amorim
Arranjo gráfico de José Marques de Abreu

Thursday, July 12, 2007

Maria Alberta Menéres

Em 1975 Maria Alberta Menéres foi a responsável pela versão do clássico de Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, uma das publicações mais populares do catálogo das Edições Afrodite - Colecção Clássicos, e que chegou a ser alvo de uma reedição bastante remodelada no final dos anos 80. Maria Alberta Menéres, em 1968, inaugurou a Colecção Cabra-Cega, dedicada a um público infantil, com o livro Conversas Com Versos, seguindo-se a edição de Perrault Vai Contar, o n.º 4 da colecção, e em 1972, Ulisses, o n.º 10.

Biografia e foto do Insónia:


Maria Alberta Menéres nasceu em Vila Nova de Gaia, em 1930. Licenciada em Ciências Histórico-Filosóficas, foi professora do ensino secundário. Colaborou em diversas publicações, nomeadamente Távola Redonda, Diário de Notícias, Cadernos do Meio-Dia. Foi responsável pela secção Iniciação Literária do Diário Popular. O seu primeiro livro de poesia, publicado em 1952, intitulava-se Intervalo. Grande parte da sua obra é dedicada à literatura infantil e juvenil, tendo recebido neste contexto o Prémio de Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian, em 1981. Em 1979, com E. M. de Melo e Castro, organizou uma Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa.

Crítica à Antologia do Conto Fantástico Português, 1.ª edição


Recensão crítica à primeira edição da Antologia do Conto Fantástico Português, no «Diário da Manhã», em 9 de Maio de 1968, assinada por Rodrigo Emílio. Nas Avelãs do Cesariny, Fernando Ribeiro de Mello, na nota 10, refere-se a este texto:

Antologia do Conto Fantástico Português

Lá que a ideia era boa, isso era. Excelente mesmo. Autêntico achado. Simplesmente a organização de uma «antologia», seja do que seja, quanto mais, ainda por cima, «do conto fantástico português», não é coisa para lembrar a qualquer e muito menos a editor-antologista que tem feito do escândalo o objectivo-mor e da perversão o fim em vista, por excelência, dos seus mal intencionados, dissolutos, objectos, deploráveis lançamentos, e outrossim instituído, como processos de acção cultural pretensamente vulgarizadora, uma ligeireza selectiva e uma incúria metodológica, abaixo de tudo.
Desta feita, ocorreu ao responsável pela casa – e fundador da colecção - «Afrodite», como é sabido, useiro e vezeiro em emissões atentatórias da moral pública, e fautor, por sistema, de trabalhos de recolha, de natureza mais que suspeita e de intuitos assaz duvidosos, a inspirada e fulgurante ideia de empreender o estabelecimento de um conspecto, consagrado inteiramente ao filão do «fantástico» encontrável no curso histórico da nossa prosa de ficção.
Tal iniciativa, se bem a ideou, muito mal, contudo, a veio a pôr em prática – como de resto era de esperar de pessoa literariamente tão mal formada e informada na matéria.
Assim, depois de meia dúzia de palavras incaracterísticas, alinhadas a despaupério em jeito de intróito, um longo séquito de nomes e de textos sobrevem – ao cabo e ao resto, muita parra e pouca uva no que se refere, claro, a «fantástico». Porque «fantástico» a valer, digno mesmo de antologiar, só em dezasseis das trinta e cinco peças coligidas afinal se vislumbra.
Acresce, como agravante, que mesmo em número tão digito de narrativas aceitávelmente «fantásticas», apesar de tudo algumas há, ainda assim, que representam deficiente ou, pelo menos insuficientemente os respectivos autores. Casos, por exemplo, de Camilo e Fialho, de Raúl Brandão e José Régio, em cujas obras muitos mais trechos havia – bastantes mais e bem melhores – por onde respigar motivação ou clima fantásticos. Isto para já não aludirmos sequer a casos pura e simplesmente omissos – alguns de palmatória como a ausência a que foi votado António Patrício, um dos mais fantásticos cultores do «fantástico» que já tivemos.
Os acertos de critério realmente não abundam. Tirando «A Dama de Pé de Cabra», de Herculano, «Uma Récita do Roberto do Diabo», de Júlio César Machado, «A Reencarnação Deliciosa», de Aquilino, «A Estranha Morte do Prof. Antena», de Sá Carneiro, «O Cágado», de Almada, «Regresso à Cúpula da Pena», de Rodrigues Miguéis, «O Gavião», de Tomás de Figueiredo, «Casa Mortuária», de Domingos Monteiro, «O Anjo», de Branquinho da Fonseca, «A Ritinha», de José de Lemos e, talvez «Pesadelo», de António Quadros, toda a restante inclusão averbada – que representa, aliás, a maioria esmagadora de páginas do compendioso volume – constitui clamorosa abertura de fronteiras à mediocridade.
Fernando Ribeiro de Mello, desde o momento em que não declarou reservado o direito de admissão literária, e antes se prestou a fazer «jeitinhos», a misturar alhos com bugalhos, dando aceitação a toda a sorte de menoridades, designadamente exercícios de redacção automática de terceira apanha, e consequentemente, figurantes de ultragésima extracção, malbaratou o ineditismo e traiu a validade da ideia que presidiu à copiosa recolecção.
Em última análise, a «Antologia do Conto Fantástico Português» revela-se pois uma falsificação chapada, onde a inflacção impera e a concessão campeia.

Alexandre Pinheiro Torres escreveu sobre O Libertino

Crítica de Alexandre Pinheiro Torres (na foto) incluída nos Textos Malditos. Inicialmente escrita para publicação no suplemento literário do «Diário de Lisboa», foi cortada pela Censura. Uma carta veemente de A. P.T., enviada de Inglaterra, onde em Cardiff era professor universitário, protestando e ameaçando de fazer barulho com o caso nos jornais ingleses levou, depois, a Censura a autorizar a publicação do texto, sem quaisquer cortes.

Luiz Pacheco ou o Burlador de Braga «magister artium eroticarum»

Com um inteligente e claro posfácio de Júlio Moreira apareceu recentemente um novo original de Luiz Pacheco, o celebrado autor de Crítica de Circunstância, livro que mercê da compreensão de toda a gente já vai na décima quinta edição.
Chama-se o novo original O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor. Sabe-se que foi disputado por várias editoras, mas o certo é que a Edição de Autor venceu mais uma vez. Desta forma é que o livro de autor português não se tornará «mercadoria» nem que o matem, mau grado a pesporrência de quem bem ajuda que tal situação de eternize, para bem dos escritores de meia tigela importados do estrangeiro e que, depois de vertidos no calão nacional, são propagandeados em caros anúncios com a melhor adjectivação que a casa gasta.
Poderá acaso o Leitor Distraído imaginar um Libertino a passear por Braga? Pode, porque podemos imaginá-lo a passear por onde lhe dê a real gana. Mas Braga – objectar-se-á – epitoma o «Establishment», e, este, embora adepto praticante convicto dos ballets rose, repele a concepção libertina segundo a qual o amor é um facto da Natureza. Apesar disso (e por isso mesmo) o Libertino vai tentar fazer a sua colheita numa coutada hostil, missionário da Verdade libertina junto do indigenato incréu, empurrado missionariamente pela premência do seu martírio, da sua glória e santificação.
Interessa-nos saber como o Libertino se descreve como um anti-D. Juan. Não é belo («com as 17 ou mais dioptrias e o estigmatismo e as lentes e as clarabóias do verde, que olhar será o meu?», interroga-se consciente do seu aspecto físico «desgraçado»), não tem um tostão («um bom Libertino não precisa de dinheiro», filosofa), e anda mal vestido, miserável («blusão de nylon preto, calças rotas no rabo, sapatos rotíssimos nas solas e sujos de poeira por cima, uma coisa entre o tedibói e o vagabundo», descreve-se).
O verdadeiro D. Juan, o Burlador de Sevilha, inventado por Tirso de Molina, esse é másculo e sabe usar da palavra. A magia verbal é com ele, embora os seus processos de sedução não deixem de não ser toscos, faz-se passar pelo noivo, promete casamento, etc., sobretudo não anda com lunetas de dezassete dioptrias nem exibe fundilhos. O Burlador de Braga está, assim, mais próximo Santo Genet, canonizado por Jean Paul-Sartre, por se tratar de uma figura que, pelo seu funambolismo charlatonesco vai tornar maravilhosos (no sentido de fontes de maravilha, surpresa, prodígio, de coisas extraordinárias e às vezes incompreensiveis) elementos que, na aparência, são ignóbeis.
O Burlador de Braga não vai ser, na verdade, como o seu antepassado espanhol. Este, como «gran garañon» de Espanha, tenta sempre suplantar as figuras que substitui. O «bracarense» não tenta suplantar nem substituir seja quem for. E, sobretudo (isto é fundamental), não promete casamento. Promete apenas prazer. Como processo de sedução utiliza os seus olhares de megatoneladas (por definição, sem eficácia). A «magia verbal» reduz-se a, nele, a um jogo simples e ingénuo de perguntas e respostas, com sugestões eróticas excessivamente vagas para a mentalidade das lolitas (?) minhotas. O Burlador de Braga esqueceu-se que a pseudovirgem de Nabukov é um produto sofisticado de um meio anti-Brgal (para usar o adjectivo de Luiz Pacheco), e que nem sequer é o H. H. que seduz ou que burla seja quem for.
A Penísula Ibérica tem de usar sempre de extremo cuidado quando tentar as comparações anglo-sáxonicas.
O auto-retaro do Libertino constitui uma ficha que serve para o colocarmos no mundo da humilhação. Descobre a Super-Lolita, e outras minilolitas de Entre Douro e Minho, mas a sua vagabundagem espiritual não lhe permite a persistência donjuanesca até as encurralar. Algumas não chegam mesmo a adivinhar que o Burlador de Braga se interessou efemeramente por elas. A admiração é à distância, não chega a haver qualquer sedução, e as suas manobras de ataque são escandalosamente ineficazes. O resultado prático é uma humilhação permanente, uma auto-flagelação, uma procura inútil do pecado, uma tentativa sempre frustrada de santificação pelo Mal. Nisto, a personagem afasta-se de Jean Genet, não chega a atingi-la nas suas ambições.
Tratar-se-á (como dirá o próprio autor) de «luxúria mental» apenas, das actividades inconsequentes e sem consequências práticas de um «Libertino dos domingos minhotos de Braga». O Libertino exclama desiludido no fim de uma jornada afinal inocente. «Mas que vontade de ter pecado. De pecar. Como assim: de viver.»

A EXEMPLARIDADE NEGATIVA

Mas em Braga é mais fácil fazer o Bem do que fazer o mal. Fazer o Mal é, às vezes, um tanto difícil. Pelo menos o Libertino não pode fazê-lo. Até porque o Mal, a ser feito em Braga, terá de ser feito de acordo com as regras antilibertinas do Establishment de que a cidade minhota á indispensável e glorioso bastião.
Augusto da Costa Dias foi quem, entre nós, e no domínio do ensaio, chamou pela primeira vez a atenção para esta inversão de valores. Ela é focada no estudo com que antecedeu a publicação do inédito de Almeida Garret, «O Roubo das Sabinas». Os caminhos da virtude são amenos e suaves, enquanto os do pecado não são. «A virtude nem é difícil nem é árdua», diz Garret, de quem Augusto da Costa Dias cita ainda estes versos:

Não, filho, só no crime há dor e angústia,
Só delícia e prazer há na virtude».


Aliás se bem interpreto é este o tópico profundo de Sartre ao interpretar Genet. Daqui se chega ao conceito de pecado como martírio, à ideia (sacrílega?) de que há uma santificação a que se pode chegar no Reino do Mal (como no Reino do Bem), daqui se chega à glorificação do mal, no sentido explicado perlo autor da Notre Dame des Fleurs: «há uma glória segregada pelos folhos da infelicidade».
Há, pois, uma santidade pela execração. Sartre chama a atenção em Saint Genet, Comédien et Martyr para o impulso que leva certos homens a procurar o desprezo e a buscar o julgamento dos outros homens. Ao lado da exemplaridade negativa. Em Jean Genet, e segundo a análise sartreana, há uma vontade de identificação com todos os pecados do mundo. Como ponto culminante desta Ética do Mal temos a ideia de que ela (da mesma forma que a Ética do Bem) também implica uma Graça.

A DEFESA DA EXEMPLARIDADE POSITIVA PELO CASTIGO

Tirso de Molina tinha de castigar o terrível D. Juan. O Burlador de Sevilha é, por isso, e segundo a moral oficial, uma obra de tendência morigeradora. Deus intervém sobrenaturalmente na figura do Convidado de Pedra e D. Juan vai par as profundas do Inferno. Mozart não pretendeu melhor solução. Não é que o sedutor sevilhano fosse, todavia, um descrente. O Leitor distraído sabe que, perante e iminência do castigo, pede um sacerdote, a fim de obter um perdão à tangente, oportunidade de redenção que lhe é negada. Assim é castigado. O nosso Guerra Junqueiro não deixa de não ter tido um espírito menos morigerador. À sua mentalidade, a este respeito pudibunda, não lhe soaria bem o triunfo do Libertino. Falar de um D. Juan, de um sedutor, é procurar-lhe simultaneamente uma punição qualquer: a defesa da exemplaridade positiva.
O Burlador de Braga, ou seja, Luiz Pacheco, não deixa também de não ser perseguido pela hantise da penitência. O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, abre com a premonição da morte. Mas o que salva Luiz Pacheco de cair no cliché é a solução magistral para o problema do castigo. Falhada a peregrinação erótica, esquivas ou inatingíveis as lolitas, O Libertino nega-se como tal, confessa a sua queda, a sua demissão a sua derrota.
O «esplendor» que ele passeia por Braga é, portanto, um esplendor negativo, porque em Braga toda e qualquer tentativa de contágio libertino tem de acabar em fracasso. A cidade minhota é, pois, emblemática do Calvário do Libertino, não só a coutada inacessível à caçada, como ao espírito, que a dita. O Calvário é representativo da reacção conservadora a uma certa mentalidade revolucionária ou à doutrinação que dela deriva. Engloba, na sua mitologia, uma certa forma de castigo ditado pelos acusadores. O Convidado de Pedra de Tirso de Molina simboliza esse júri silencioso, mas tremendamente eficaz, que é a moral do Establishment. Guerra Junqueiro, em A Morte de D. João, soube (apesar da Velhice do Padre Eterno) ser dela um perfeito porta-voz, em nome da piedade humanitarista pelas vítimas dos burladores.
Mas no livro de Luiz Pacheco o Libertino não pode ser englobado no sector dos acusados. Nisto é que a personagem se opõe diametralmente a D. Juan, e é mesmo um anti-D. Juan. A argúcia de Pacheco foi ver esta implicação fundamental, ao definir a personagem por meio de uma caraterologia que é, detalhe por detalhe, uma «teologia negativa» relativamente à personagem tradicional. É certo que esta degradação do sedutor já tem antecedentes na literatura portuguesa. Estou a lembrar-me da forma como Gomes Leal a retrata nas Claridades do Sul. Mas Luiz Pacheco transcende obviamente estes planos, ligando o seu Libertino a outra genealogia. Poder-se-á mesmo dizer que a progénie do seu Libertino nada tem a ver com qualquer tradição. Pelo menos com a nossa tradição.
Mas não me interessando deslindar este aspecto há que afirmar que Luiz Pacheco coloca, com argúcia, a sua personagem no sector dos acusadores da sociedade. Os pecadores contra a instituição da heterosexualidade, como Gide, não deixam, a cada momento azado, de procurar a justificação. No fundo sentem-se sempre, e profundamente, no banco dos réus. Corydon ou Si le grain ne meurt são discursos de defesa contra uma Sociedade de dedo apontado. Gide está no limiar de Genet. E Genet já acusa, obviamente.
Seria injustiça, todavia, dizer que Luiz Pacheco é um mini-Genet ou um Libertino de bolso de colete. Bastaria a profunda genuinidade de O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor, o seu carácter, a sua atmosfera tão portuguesa, para demitirmos o juízo derrogativo. Até porque Luiz Pacheco escolhe para oferecer-nos a face em que o Libertino não se realiza, em que tudo rigorosamente lha falha, e em que o libertinismo se limita a uma nem sempre muito atrevida aventura mental. Não é este o caso de Genet, se bem interpreto.
O casanovismo frustrado deste Libertino leva-o de decepção em decepção O que lhe interessa é pecar, pecar pela carne, pecar é viver, e tudo o mais é uma forma de morte. A realidade última do homem, o seu mais profundo estrato, aquilo que mais susceptível é de aprofundar as zonas obscuras da consciência, ou de tornar possível a pesquisa da autenticidade humana, a vida em estado puro (como foi moda dizer-se), tudo isso vai ser negado ao Libertino. A sua marcha através de Braga é, pois, uma auto-flagelação, um exercício de masochismo mental, porque a cidade minhota descobriu, e explora, as suas formas ersátzicas de vida, e estas têm um peso demasiado grande para que qualquer Libertino individualista as vença como um novo Cristo.

A MISÉRIA REABILITADA?

Uma implicação ideológica profunda é aquela segundo a qual se poderia dizer que este livro de Pacheco tenta a reabilitação de um certo estado de miséria. A poetização da miséria. A miséria como fonte de maravilha. Mas em todas as coisas aparentemente negativas pode haver uma faceta positiva. É que, com efeito, este poeta maldito que nos aparece no livro de Pacheco (e não interessa que nos asseverem que é um rigoroso alter ego do autor) assume a miséria como recusa militante do Establishment, não acreditando que este possa ser destruído, por exemplo, pelas atitudes de V. S., personagem indirecta da narrativa, mas importantes pelo seu simbolismo. O negativismo romântico do Libertino leva-o, como se vê a um corte com todas as formas organizadas de resistência. Para ele só há uma forma de dignidade: é a de recusar tudo.
É esta atitude heróica, que leva à miséria e ignomínia, através de um Calvário de auto-aniquilação, o que profundamente o livro de Luiz Pacheco simbolilza, postula e retrata.
Que para além das implicações diversas, mais ou menos especulativas, e com a feição da ideologia a que cada qual se agarra (ou finge), seja dito, porém, que O Libertino passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor é, pela novidade da linguagem, e pelo desassombro do depoimento, uma obra rigorosamente única da nossa moderna ficção.

Cardiff, Abril de 1970

Alexandre Pinheiro Torres