Wednesday, November 22, 2006

Bocage na Poesia Portuguesa Erótica e Satírica – Séc. XVIII – XIX

Bocage (1765 – 1805)

Temperamento contraditório – como diversas vezes tem sido assinalado por literatos e comentadores da literatura -, Bocage representa talvez a melhor síntese da miséria sexual portuguesa, nos seus aspectos mais paradoxais.
Do racionalismo francês assimila algumas ideias gerais, mas acabou a sua produção poética com o “Rasga meus versos, crê na Eternidade!”. Porque a Razão lhe aponta o absurdo do Inferno, com seu fogo e seus caldeiros, denuncia-o como fábula repressiva na “Pavorosa Ilusão da Eternidade”; mas nem por isso dispensa um Deus justo e bondoso, "Pai" compreensivo para com a cópula.
Capaz duma afirmação erótica libertadora, exaltada, a rondar a máxima pureza (cf. As epístolas de Alzira a Olinda e o fragmento da “Pavorosa Ilusão” aqui reproduzido), Bocage á também um autor pornográfico (cf. “A Ribeirada”, o poema dedicado a Manteiguiu e os sonetos).
Esta segunda faceta, que lhe terá valido a popularidade e a atribuição de muita versalhada de duvidosa autoria, longe de contestar uma sociedade tacanha, denuncia a cumplicidade do autor com um tipo de maledicência muito ao gosto nacional: o picante do adultério e da cornadura, em relação com o priapismo e a ninfomania. Ao dar às suas personagens estas duas últimas características, Bocage dá largas à sua veia heroi-cómica, numa linguagem hiperbólica que não chega a mascar a ressentimento. A virilidade alheia, satirizada em proporções ciclópicas, actua como compensação da frustração e da carência próprias.
A ninfomaníaca, poço insaciável de machos fenomenais, é o fruto cobiçado e inatingível, vingativamente degradado na imaginação.
Tudo se passa como so apelo erótico, recebendo o silêncio por resposta, não encontrasse outra saída senão a inveja em relação à vivência alheia. Dai a sonhada exaltação dos corpos, contraposta pela degradação dos mesmos.
Em suma: a confirmação da marginalidade. Um lenitivo: o auto-sarcasmo. Quando Bocage escreve

“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa:
Comeu, bebeu, fodeu, sem ter dinheiro.”

leia-se a angústia disfarçada dum marginal, perseguido pela miséria sob todas as formas, e que gostaria de ter atirado um certo estilo de libertinagem à cara dos respeitáveis desse tempo. Mas a sociedade estava bem protegida...como sempre!

Soneto II

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade;

Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-veintes em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade.

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

“Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa:
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.”